O chão de meu pai

 


       – Zée! Corre, Zé! O galeguin do vizinho tá se afogando. Acode, homi! – O grito de Francisca subiu apavorado pela ladeira.
       O marido jogou o prato de alumínio no chão do alpendre, cuspiu o naco de carne e desceu a ribanceira do açude, marcando o lugar onde o menino ia afundar pela última vez.
      Bom nadador, ele partiu no rumo certo, mas o sol e o bucho cheios pesaram. Prendeu o fôlego e mergulhou; após a terceira mãozada vazia, retornou. Vomitou a outra metade do jabá, recalibrou o peito, sapateou no ar e foi mais fundo. 
      Desceu até os ouvidos zunirem, rodopiou pernas e braços abertos no breu até sentir os dedos se engancharem nos cachinhos. Levou o garoto para o barranco, soprou a boca e apertou as pás. O fogoió tossiu dois litros d’água e choramingou.
      Zé não voltou para o roçado naquela tarde. Na semana seguinte, a congestão levou o meu avô, o juízo de minha avó e o chão de meu pai. José Furtado da Cruz não envelheceu.

        Vicente estava no último ano do CPOR na Praia Vermelha. Passou dificuldade; a cidade era menos maravilhosa para o seu sotaque. Tentou escapar para uma guerra de verdade, entrando na fila do alistamento para Força Expedicionária Brasileira que seguia para Itália. Foi salvo na última hora por um professor conterrâneo.
      – Tá querendo se amostrar, Vicente? Seu pai não lhe mandou aqui pra morrer não, cabra. Saia já daí e vá estudar.
       O jovem chegou a iniciar o curso preparatório para a Nacional de Medicina, mas esse futuro desapareceu ao abrir a carta que trazia a foto do pai, a mortalha e o caixão.
       Trinta dias de vapor e pau-de-arara trouxeram o rapaz de volta à Missão Velha do Cariri. Voltou para criar a mãe e os cinco irmãos menores. Vicente Furtado da Cruz envelheceu.

                         03/07/2020

Comentários

  1. Que triste... muito boa, mas triste, como tantas outras.

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  2. Quando o poeta conta a história ela começa a tomar parte no coração de todos…
    Christina

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    Respostas
    1. Sim, Christina. Já dizia o poeta maior : "Caminho por uma rua que passa em muitos países ... minha vida, nossas vidas formam um só diamante.” CDA

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