Escolhas e formigas
Vitória não se lembrava do que aconteceu naquela tarde de domingo. Lentamente, algumas imagens foram se formando: a cartela vazia de comprimidos tarja preta, o copo de leite e o pó branco macerado no fundo do pilão de ardósia que o professor de sociologia lhe deu no passeio que fizeram pela feirinha de artesanato do MASP, no dia mais feliz da sua vida. Ela nunca imaginou que andaria de mãos dadas a um homem tão inteligente. Pena ele não ter conseguido abandonar a esposa e o filho recém-nascido. Outras duas alunas perderiam o semestre naquele ano, mas Vitória decidiu perder mais.
"Graças a Deus você acordou, minha filha", a voz longínqua de Dona Adélia se somava a orquestra dissonante dos alarmes da UTI do Hospital Nove de Julho, confirmando para jovem que ela havia falhado. O trauma do tubo ainda lhe queimava a garganta e os hematomas tatuavam seus braços, enquanto a sonda de borracha era puxada de sua uretra por uma enfermeira que lhe chamava pelo apelido. "Você deu trabalho, Vivi". O campo de batalha era desmontado e a guerra foi vencida, mas os olhos da moça se encheram de tristeza e vergonha ao perceberem que ela não havia conseguido se matar.
De volta a Conceição do Mato Dentro, Vitória se recusava a convalescer. As amigas da mãe iniciaram uma novena pela sua recuperação. Não funcionou. No terceiro dia a jovem parou de comer, raspou a cabeça e mastigou duas páginas da Bíblia na frente das velhinhas, que saíram correndo da casa fazendo o sinal da cruz. A mãe decidiu levá-la para o sítio, a trinta quilômetros dali, no pé da Serra do Cipó. Foi lá que a menina aprendeu a devorar livros. Foi lá que o interior de Minas se tornou pequeno demais e a ida para a Universidade de São Paulo o único caminho aceitável.
Semanas se passaram sem a moça mostrar sinais de melhora. Vitória comia o mínimo para sobreviver. Fazia isso pela mãe. Dona Adélia era uma senhora simples que se casou tarde e foi abandonada pelo marido antes da única filha completar três anos. Por isso insistiu em dar à menina a liberdade que nunca conheceu. Familiares e amigos próximos a criticaram: "Você vai perder essa menina", "São Paulo é uma selva". "Ela é muito sensível". Dona Adélia não merecia ser punida por ninguém. Acima de tudo, não merecia se punir por algo que fez de certo. Vitória prometeu não se matar mais, não enquanto sua mãe estivesse viva.
O contato com a natureza foi dando o seu jeito. Aos poucos, Vitória recuperou o peso e a vontade. Certo dia, acordou cedo e decidida; tomou o café e saiu sozinha pela trilha que levava à Cachoeira do Altar. Chegando lá, entrou embaixo da queda d’água e ali ficou por quase uma hora. Sentiu-se bem por ainda saber onde apoiar os pés. Renovando o ritual, esticou a sua canga no banco de areia que margeava a lagoa, acendeu um cigarro e deitou-se de bruços, hipnotizada por uma interminável fileira de formigas que carregavam folhas muito mais pesadas do que seus corpos, disciplinadamente. “Aposto que vocês são todas fêmeas”, dormiu.
O início da chuva forte e o galope do cavalo que se aproximava acordaram Vitória.
– Moça, a gente precisa sair daqui agora. Tá vindo uma tromba d'água. Sua mãe tá preocupada. Suba no cavalo – disse rapaz barbado que descia do animal. Vitória obedeceu assustada. O homem teve que puxar, gritar e açoitar o cavalo várias vezes para fazê-lo enfrentar a lama, a ribanceira íngreme e os seus instintos.
O início da chuva forte e o galope do cavalo que se aproximava acordaram Vitória.
– Moça, a gente precisa sair daqui agora. Tá vindo uma tromba d'água. Sua mãe tá preocupada. Suba no cavalo – disse rapaz barbado que descia do animal. Vitória obedeceu assustada. O homem teve que puxar, gritar e açoitar o cavalo várias vezes para fazê-lo enfrentar a lama, a ribanceira íngreme e os seus instintos.
Quando chegaram à estrada o jovem subiu atrás de Vitória e os três retornaram ao sítio em silêncio. A violência da cena na cachoeira, o vento frio no biquini molhado e o contato direto com o pelo do cavalo e com o corpo do desconhecido, deixaram Vitória irritada e confusa.
– Graças a Deus você a encontrou, Tonin? Você se lembra dele, Vitória? Vocês brincaram muito nesse quintal – disse Dona Adélia, do alpendre da casa.
– Não, minha mãe. Não me lembro dele ... e agora eu preciso tomar um banho – respondeu a jovem visivelmente aborrecida, antes de correr para o seu quarto.
Tonin era filho do dono da chácara vizinha. O rapaz teve que abandonar os estudos e assumir o serviço da propriedade ainda jovem, por causa do acidente de trator que tirou os movimentos das pernas do seu pai.
No dia seguinte, Belinha, a fiel escudeira de Dona Adélia, colocou um bolo de fubá na mesa e avisou:
– Pode tirar o olho, Vivi. Esse aqui é para a senhorita levar para o Tonin. Foi muito feio ocê sair correndo sem agradecer o moço depois daquela presepada que ocê aprontou ontem. Isso não se faz, viu, menina?
– Não, minha mãe. Não me lembro dele ... e agora eu preciso tomar um banho – respondeu a jovem visivelmente aborrecida, antes de correr para o seu quarto.
Tonin era filho do dono da chácara vizinha. O rapaz teve que abandonar os estudos e assumir o serviço da propriedade ainda jovem, por causa do acidente de trator que tirou os movimentos das pernas do seu pai.
No dia seguinte, Belinha, a fiel escudeira de Dona Adélia, colocou um bolo de fubá na mesa e avisou:
– Pode tirar o olho, Vivi. Esse aqui é para a senhorita levar para o Tonin. Foi muito feio ocê sair correndo sem agradecer o moço depois daquela presepada que ocê aprontou ontem. Isso não se faz, viu, menina?
Vitória sorriu e respondeu:
–Vou pensar no seu caso, senhorita Belinha.
A cozinheira olhou para a patroa e piscou o olho. Finalmente o humor da menina dava sinais de vida. E a moça cumpriu a tarefa. Ao cair da tarde, Vitória bateu na porta do casebre que ficava nos fundos da casa principal da chácara, com o prato de bolo amarrado num pano estampado. Tonin tinha acabado de tomar banho e abriu a porta sem jeito, não sabendo muito bem o que dizer. Não era acostumado a receber visitas, muito menos de mulheres. Vitória resolveu ajudar o matuto:
– Eu trouxe esse bolo pra cá com uma condição. Você vai ter que me dar um pedaço. Tem um cafezinho aí?
– Tem, uai! Minha mãe sempre deixa a garrafa térmica cheia. Só não repara na bagunça – exagerou o rapaz. O lugar era pequeno, mas tudo estava no lugar: o sofá de frente para a TV, a geladeira e a mesa de fórmica com duas cadeiras; o banheiro e o quarto, mais à frente.
Lancharam ansiosos sem sentir o gosto do fubá ou do café, até o silêncio ser novamente quebrado por Vitória:
– Você se lembra de mim?
Tonin demorou quase um minuto para responder:
– Lembro demais.
O rapaz foi buscar, numa velha caixa de sapatos que guardava embaixo da cama, uma fotografia de duas crianças cobertas de lama em cima de um cavalo.
–Vou pensar no seu caso, senhorita Belinha.
A cozinheira olhou para a patroa e piscou o olho. Finalmente o humor da menina dava sinais de vida. E a moça cumpriu a tarefa. Ao cair da tarde, Vitória bateu na porta do casebre que ficava nos fundos da casa principal da chácara, com o prato de bolo amarrado num pano estampado. Tonin tinha acabado de tomar banho e abriu a porta sem jeito, não sabendo muito bem o que dizer. Não era acostumado a receber visitas, muito menos de mulheres. Vitória resolveu ajudar o matuto:
– Eu trouxe esse bolo pra cá com uma condição. Você vai ter que me dar um pedaço. Tem um cafezinho aí?
– Tem, uai! Minha mãe sempre deixa a garrafa térmica cheia. Só não repara na bagunça – exagerou o rapaz. O lugar era pequeno, mas tudo estava no lugar: o sofá de frente para a TV, a geladeira e a mesa de fórmica com duas cadeiras; o banheiro e o quarto, mais à frente.
Lancharam ansiosos sem sentir o gosto do fubá ou do café, até o silêncio ser novamente quebrado por Vitória:
– Você se lembra de mim?
Tonin demorou quase um minuto para responder:
– Lembro demais.
O rapaz foi buscar, numa velha caixa de sapatos que guardava embaixo da cama, uma fotografia de duas crianças cobertas de lama em cima de um cavalo.
– Essa menina não é você?
– Nossa! Eu me lembro muito desse cavalo.
– É o Tufão. Ele era o pai do cavalo que te salvou ontem. Eu levava ele pro seu sítio todos os dias, numa das férias que você veio passar aqui, antes de você virar intelectual. É que naquela época eu ainda não usava barba...
– Nossa! Eu me lembro muito desse cavalo.
– É o Tufão. Ele era o pai do cavalo que te salvou ontem. Eu levava ele pro seu sítio todos os dias, numa das férias que você veio passar aqui, antes de você virar intelectual. É que naquela época eu ainda não usava barba...
– Então... deve ser por isso que eu não me lembrei. Eu não costumo me esquecer de homens bonitos como você.
Sem saber de onde veio tanta coragem, Vitória deu um beijo na boca de Tonin. O rapaz se assustou, mas dessa vez não demorou a responder. A aventura do dia anterior deixou o jovem casal com os instintos a flor da pele. Os corpos se uniram como os de dois amantes que não se encontravam há décadas. Movimentos perfeitos, sem hesitação ou medo de decepcionar. Nenhuma palavra, apenas firmeza, paciência e generosidade. Vitória ficou até terminarem o bolo de fubá e a garrafa de café.
Encontraram-se mais algumas vezes em segredo antes de anunciarem o namoro. Nem eles acreditavam que um prazer como aquele pudesse se repetir por muito tempo. A simplicidade e o silêncio do vaqueiro incomodavam a socióloga até a terceira página e o primeiro olhar. Daí em diante, a pele falava mais alto. Uma improvável intimidade foi acontecendo entre os dois.
Encontraram-se mais algumas vezes em segredo antes de anunciarem o namoro. Nem eles acreditavam que um prazer como aquele pudesse se repetir por muito tempo. A simplicidade e o silêncio do vaqueiro incomodavam a socióloga até a terceira página e o primeiro olhar. Daí em diante, a pele falava mais alto. Uma improvável intimidade foi acontecendo entre os dois.
– Isso tá parecendo um feitiço. Será que é assim com todo mundo? – ele perguntou.
– Não, não é – disse ela.
Os dois sabiam, porém, que o início do semestre se aproximava e que Vitória teria que decidir sobre o reinício do mestrado. Sabiam também que Tonin estava preso a sua terra por uma escolha feita muito antes. A proteção dos pais, o serviço com a roça e com os animais colocaram limites bem claros à sua vida. O rapaz nunca aceitou outra opção.
– Não, não é – disse ela.
Os dois sabiam, porém, que o início do semestre se aproximava e que Vitória teria que decidir sobre o reinício do mestrado. Sabiam também que Tonin estava preso a sua terra por uma escolha feita muito antes. A proteção dos pais, o serviço com a roça e com os animais colocaram limites bem claros à sua vida. O rapaz nunca aceitou outra opção.
Apesar da gravidade do ocorrido, ninguém além de Vitória poderia definir quais seriam seus próximos passos. Difícil saber se o risco de voltar para São Paulo era maior do que o de trocar a vida acadêmica e a liberdade tão planejada pelo tédio da vida no campo. D. Adélia e Belinha aguardaram pela decisão da moça com apreensão. E ela decidiu: iria retornar aos estudos e terminar o que começou.
Tonin foi se despedir na estação de ônibus:
– Vou esperar o tempo que você quiser que eu espere.
– Eu sei.
No mês seguinte, numa manhã ensolarada de domingo, Vitória finalmente abriu a caixa do teste de gravidez que havia comprado no início da semana. Preferiu adiar a sentença para um dia menos atribulado. Um mês de atraso e o início dos enjoos não podiam ser ignorados por mais tempo. Saiu do banheiro com a fita na mão. Em três minutos uma cor definiria o seu novo destino. Azul: positivo. Vitória tinha mais uma decisão pela frente.
A jovem entrou na estação Butantã com a mochila nas costas, chegando no Parque Ibirapuera, estendeu a canga embaixo da sombra mais próxima do lago. Recostou-se na árvore e abriu o livro de Kundera, como se fosse possível ler alguma coisa naquela manhã. As formigas ganharam a sua atenção novamente. Dessa vez, percebeu que somente as que retornavam ao formigueiro traziam a carga desproporcional. As que seguiam no sentido oposto ainda estavam leves e livres. Uma forte ventania atravessou a cena. As únicas formigas que não voaram para o lago foram as que estavam embaixo de seus fardos.
Tonin foi se despedir na estação de ônibus:
– Vou esperar o tempo que você quiser que eu espere.
– Eu sei.
No mês seguinte, numa manhã ensolarada de domingo, Vitória finalmente abriu a caixa do teste de gravidez que havia comprado no início da semana. Preferiu adiar a sentença para um dia menos atribulado. Um mês de atraso e o início dos enjoos não podiam ser ignorados por mais tempo. Saiu do banheiro com a fita na mão. Em três minutos uma cor definiria o seu novo destino. Azul: positivo. Vitória tinha mais uma decisão pela frente.
A jovem entrou na estação Butantã com a mochila nas costas, chegando no Parque Ibirapuera, estendeu a canga embaixo da sombra mais próxima do lago. Recostou-se na árvore e abriu o livro de Kundera, como se fosse possível ler alguma coisa naquela manhã. As formigas ganharam a sua atenção novamente. Dessa vez, percebeu que somente as que retornavam ao formigueiro traziam a carga desproporcional. As que seguiam no sentido oposto ainda estavam leves e livres. Uma forte ventania atravessou a cena. As únicas formigas que não voaram para o lago foram as que estavam embaixo de seus fardos.
Vitória escolheu não ter outra opção.
Moi! Fantástico o reencontro de Tonin e Vitória, e adorável a decisão dela, em relação ao futuro!
ResponderExcluirJamais renunciar à nossa carga, por mais difícil que possa parecer!
👏👏👏