A pílula

 



       – Pronto, Vicente! Agora não tem mais perigo. Tô tomando pílula.
       O sétimo filho não era esperado. O marido tinha acabado de passar um mês na UTI após o último capotamento com a Kombi. A saudade era tão grande que Lourdes não ouviu o médico falar que o efeito do anticoncepcional só se iniciaria no mês seguinte.
     – Homi, mais um? Você acha que eu vou ficar vendendo as minhas férias a vida toda?  Vicente ameaçou ir embora de casa mais uma vez e ficou um mês sem falar com a esposa.
        Por sorte o último berço ainda estava guardado perto do cobogó e foi remontado na suíte do casal. As roupas do caçula temporão ficaram em um espaço entre as prateleiras do armário da mãe durante toda a sua infância. 
       Quando o irmão mais velho se casou e se mudou para o quarto de televisão, surgiu uma vaga no cômodo dos rapazes. O caçula ficou orgulhoso com a promoção, mas o armário exclusivo só foi conquistado dois anos mais tarde.
      As três camas ficavam enfileiradas entre duas estantes. A mais alta, a cerca de um metro do pé da cama, ia até o teto e contava com três escrivaninhas embutidas, cada uma com um tamborete e uma lâmpada fosforescente com mal-contato.
       O caçula chegou disfarçando humildade (sabia que era o mais inteligente). Colocou a tabuada e seus cadernos na escrivaninha do meio e demorou um pouco para se acostumar com aquele monte de livros vigiando seu sono.
       No quarto das meninas uma penteadeira de ferro ocupava o lugar da estante. As duas conviviam por temporadas; quando uma chegava a outra saía. O caçula só conheceu a irmã mais velha quando fez três anos de idade. Ela teve que lhe dar um velotrol e um poodle para convencê-lo de que era sua parente. A irmã mais nova gostava de briga, mas foi quem lhe ensinou a decorar o Pai Nosso e a Ave Maria.
       Demorou a entender porque um dos seus irmãos foi criado em outra cidade por uma tia e um tio rico que não podiam ter filhos. Esse era danado; aparecia no Natal com um Opala SS vermelho e preto, confiscava a cama do garoto, colocava apelidos em todo mundo e ia embora.
        Os filhos foram deixando o apartamento, cada um no seu tempo. O "não esperado" ficou com os pais até bem próximo deles partirem. Tornou-se o rei da casa, do quarto e dos armários, mas as tarefas também se acumularam: aplicava a insulina do pai duas vezes por dia, levava a mãe para o supermercado e para o biriba; comprava o frango e a pizza do Roma todos os domingos.
       Por fim, o velho Vicente deve ter se convencido que não foi um negócio tão ruim assim aquela pílula ter falhado.

Comentários

  1. Viajei de volta no tempo naquele apartamento da 114...achava o máximo aquelas 3 camas no mesmo quarto onde só tinha jovens lindos...e os retratos na parede...não me cansava de olhar....(Carmem Marcello)

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