Sombra no espelho
A esposa dormia desde às nove e meia. O marido voltou da sala de TV, escovou os dentes, tomou os remédios. Antes de sair do banheiro, apagou a luz e esperou a visão se adaptar.
Viu a própria silhueta se formando lentamente no espelho. Entendia a fisiologia do fenômeno. Bilhões de bastonetes entravam em ação assim que o lixo das reações neurofotoquímicas de milhões de cones eram varridas para debaixo do carpete pigmentar da retina.
Porém, antes de iniciar a longa caminhada até a cama, a sombra escura que se formou no espelho olhou para ele e disse:
Porém, antes de iniciar a longa caminhada até a cama, a sombra escura que se formou no espelho olhou para ele e disse:
– É assim que funciona.
Sem dar muita atencão ao devaneio, o homem foi para a cama e se cobriu com a manta, deixando o pé esquerdo de fora. A cadelinha pediu para subir e conseguiu; posicionando-se entre o pé vestido e o nu.
Sem dar muita atencão ao devaneio, o homem foi para a cama e se cobriu com a manta, deixando o pé esquerdo de fora. A cadelinha pediu para subir e conseguiu; posicionando-se entre o pé vestido e o nu.
O sono, que nunca foi fácil aos domingos, ficou mais arredio com o dilema do vulto refletido. "Assim que funciona o quê, demônio?"
Algumas elucubrações surgiram: as novas percepções que surgem quando a energia da juventude vai se apagando, brilhos que só aparecem no escuro ... nada que ultrapassasse os clichês. "Tudo acaba, a decrepitude é uma realidade e pronto. Ah domingo..."
Nessa altura da vida já sabia que para atrair o sono bastava não pensar, fechar os olhos e imaginar cores e imagens, sem cones e bastonetes. Mesmo assim colocou um fone de ouvido na orelha direita e começou a ouvir seus podcasts preferidos.
Algumas elucubrações surgiram: as novas percepções que surgem quando a energia da juventude vai se apagando, brilhos que só aparecem no escuro ... nada que ultrapassasse os clichês. "Tudo acaba, a decrepitude é uma realidade e pronto. Ah domingo..."
Nessa altura da vida já sabia que para atrair o sono bastava não pensar, fechar os olhos e imaginar cores e imagens, sem cones e bastonetes. Mesmo assim colocou um fone de ouvido na orelha direita e começou a ouvir seus podcasts preferidos.
Após duas pamonhas do Clóvis e uma aula de infelicidade com o Pondé, o teimoso insone começou a se preocupar com o cansaço na segunda-feira. Lembrou-se, porém, que havia prometido a si mesmo rever os maravilhosos Cânticos que Cecília Meireles escrevera aos vinte anos de idade. Trocou o fone de orelha e deixou os dois pés fora da coberta. A cadelinha desistiu e desceu para a sua caminha.
Por volta do décimo oitavo cântico, o notívago chegou a se questionar se eles eram mesmo tão maravilhosos. "Ninguém é capaz de escrever boa coisa aos vinte anos de idade e nada pode ser bom na madrugada de domingo".
Mas Cecília nunca decepciona. No último cântico, lá do alto, como sempre, a poeta pega a insônia pela mão e ilumina a sombra, o espelho, a madrugada e a crônica:
Por volta do décimo oitavo cântico, o notívago chegou a se questionar se eles eram mesmo tão maravilhosos. "Ninguém é capaz de escrever boa coisa aos vinte anos de idade e nada pode ser bom na madrugada de domingo".
Mas Cecília nunca decepciona. No último cântico, lá do alto, como sempre, a poeta pega a insônia pela mão e ilumina a sombra, o espelho, a madrugada e a crônica:
XXVI
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste breve,
O que tu viste inútil,
Foi o que viram os teus olhos
humanos,
Esquecidos...
enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
Estende sobre a vida
os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
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