As mãos de Adélia

      

       Os cabelos brancos, a pele quebrada e a vergonha calculada bastariam para emoldurar a fala da entrevistada, mas são suas mãos que não consigo parar de olhar.

       Ajeitando os cabelos, espalmadas sobre o rosto ou lançadas para o alto em adoração, seus gestos orquestram cada palavra dita, terminam de significar. Delas surgem a filha, a esposa, a mãe, a doida e Deus.

“Minha mãe a minutos da morte
me ordenou profética:
vai calçar um trem, 
 agora mesmo a casa enche de gente.”


            Quando Dona Ana morreu antes da hora, a filha debutante quis escrever. A vida não deixou. A menina precisava terminar o magistério, lecionar, se casar com um Zé e parir cinco filhos. Não tinha tempo para endoidar. Guimarães Rosa, Drummond e Clarice foram os refúgios.

     “Foi quando o trem passou,
uma grande composição levando óleo inflamável. Lembrei de meu pai corrompendo a palavra que usava 
só para trens, dizendo ‘cumpusição’. ”

           Quando seu João partiu antes do que ela queria, a mulher encontrou sua voz e quis publicar. Concluiu o curso de filosofia e enviou sua “Bagagem” para o exame de Affonso Romano, que ficou impressionado, mas não quis definir. Drummond fechou o diagnóstico e a sentença:
         – É poesia! Pode publicar.
        
 A religiosa dona de casa do interior de Minas possuía um radar de última geração. Veio com a alma velha, dessas que o sentimento do mundo não costuma deixar em paz. Gente assim não tem escolha, escrever é uma ordem.

            “Quando era criança
        escondia-me no galinheiro
            hipnotizando galinhas.
     Alguma força se esvaia de mim,
     pois ficávamos tontas, eu e elas.        
...

  Meu treinamento é ordenar palavras:
     Sejam um poema!, digo-lhes,
não se comportem como, no galinheiro,
        Eu com as galinhas tontas. ”

        Adélia, classificada na terceira geração do Modernismo, espalha seus versos na página sem qualquer formalismo estético que não obedeça a beleza mais simples. Inventou sua métrica e seu ritmo. Basta ouví-la declamando para saber que tudo está no lugar certo.

           “Detesto escrita elegante, a coisa elaborada, em que você vê o andaime, é ruim demais, não é? ”

            Drummond estava certo: “Coração disparado”, o segundo livro, deu o prêmio Jabuti para Adélia. “Solte os cachorros” e “Cacos para um Vitral” vieram em prosa. “Terra de Santa Cruz”, “Pelicano” e “Faca no peito” completaram a primeira fornada da poeta mineira em 1988.     

           “Não quero mais amar Jonathan.
   Estou cansada deste amor sem mimos,
destinado a tornar-se um amor de velhos.
    Ó Jonathan, não depende de você
  que a cornucópia invisível jorre ouro.
            Nem de mim.
  Escreve-o quem me dita as palavras,
       escreve-o por minha mão. ”

Adélia não sabe responder (nem com as mãos) se foi a tristeza que a fez parar de escrever por seis anos. Prefere dizer que a melancolia vai embora sempre que sua poesia volta ao papel. “O homem da mão seca” foi publicado em 1994 e Oráculos de Maio em 1998. Não parou mais.

                         “ Ainda me restam coisas
           mais importantes que hormônios.
   Aos trinta anos tinha vergonha de parecer jovenzinha,
     idade hoje em que as mulheres ainda maravilhosas
                  se processam ácidas e perfeitas
                    como a legumes no vinagre.
             De qualquer modo, se o mundo acabar
                             a culpa é nossa. ”

            No tripé Deus, morte e sexo, a poeta caminha sincera e corajosa. Apoiada na psicologia analítica de Jung, identifica o feminino e o masculino dentro de si. Mostra o poder da delicadeza, da beleza e do serviço. Revela que a liberdade da mulher não cabe em panfletos, não serve a agendas, mas é terno, é esteio, é a força humana mais poderosa que existe.

                       “... Ó Deus,
        me deixa trabalhar na cozinha,
          nem vendedor nem escrivão,
               me deixa fazer Teu pão.
                Filha, diz-me o senhor,
                  eu só como palavras. “


        As mãos de Adélia resgatam a beleza da liturgia e provocam a nossa fé. Não temem discutir a força redentora do pecado e do perdão. Cívica, metafísica e sensual, a poeta fala sobre peixe, panela e choro de criança – sua vidinha - mas escreveria sobre qualquer coisa, contanto que houvesse poesia em suas palavras.

                   “Quando o ano acinzenta-se em agosto
                 e chove sobre as árvores                        
             que mesmo antes das chuvas
                   já reverdeceram,
                da mesma estação 
      levantam-se nossos mortos queridos
      os passarinhos que ainda vão nascer.
            Ó morte, onde está tua vitória? ”

            Adélia nasceu e vai morrer em Divinópolis, em uma casa alaranjada constantemente amanhecendo. Não nesta cidade de duzentas mil pessoas, mas naquela primeira, na beira da ferrovia onde o pai João trabalhava e a mãe morreu jovem, onde se casou com o bancário Zé, onde criou filhos e versos, perto da igreja, de onde ela consegue enxergar o universo inteiro.

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