Quintana

 


              A sobrinha conduz a cadeira de rodas pelo corredor que se abre na multidão que lota o pátio central do Hotel Magestic restaurado. Acostumados ao invisível, os olhos atentos do velho viajam no tempo e custam a acreditar no que veem. O poeta se levanta para mirar as torres e as passarelas suspensas. Nunca imaginou estar na inauguração da sua própria eternidade.  

            Em 1906, era remota a chance de vida de um prematuro de sete meses que nascia no inverno da fronteira gaúcha. Por isso, o pequenino caçula temporão, neto de médicos, teve a sua infância confinada no interior do Solar dos Leões. O medo da morte sempre esteve nos outros.

"Eu fui um menino por trás de uma vidraça – um menino de aquário. Via o mundo passar numa tela cinematográfica, mas que repetia sempre as mesmas cenas, as mesmas personagens." 

          O garoto temia mais o sótão e as escadarias do sobrado do que a rua que passava pela janela. Mario, aprendeu a ler sem saber que estava lendo. A familiaridade com o francês e o espanhol veio com as poesias recitadas pelos pais. 

          Aos treze anos o jovem foi para o Colégio Militar de Porto Alegre. Seus primeiros escritos foram publicados na revista da escola. Gostou de algumas matérias, em outras foi reprovado. Cinco anos mais tarde, sem concluir o colegial, foi trazido de volta a Alegrete para aprender o ofício do pai na farmácia. 

          O ano de 1926 foi marcado pela morte da mãe e pelo prêmio no concurso de contos do Diário de Notícias de Porto Alegre. "Depois de algumas outras tentativas, reconheci que os meus contos só tinham um personagem: eu mesmo. Desisti. ” Seu pai morreu no ano seguinte. 

          Aos vinte três anos o rapaz mudou-se definitivamente para Porto Alegre e começou a trabalhar no jornal Estado do Rio Grande e na Editora Globo, a convite do amigo Érico Veríssimo. Mario traduziu mais de cento e trinta obras da literatura universal, entre elas “Palavras e Sangue” de Giovanni Papini, “Em Busca do Tempo Perdido” de Marcel Proust e “Mrs. Dalloway” de Virginia Woolf. 

          Seu primeiro livro, “A Rua dos Cataventos”, foi publicado somente em 1940, após muita insistência do irmão Milton e dos amigos escritores: “Se você não publicar, vão pensar que você é só um boêmio”. 

         Mario atribuiu o atraso à preguiça e à consciência. “Tudo o que prejudica a minha preguiça, prejudica o meu trabalho. " Meio século depois, o poeta detalha a tese no livro “Da Preguiça como método de trabalho”. 

         A estreia com um livro de sonetos decassílabos agradou mais ao público do que à crítica Modernista. Os leitores talvez tenham entendido melhor, e antes, a transcendência dos versos do jovem escritor. 

          “Muita vez o poeta é induzido a modas, quando na verdade não há nada tão ridículo como os figurinos da última estação. Só nunca sai da moda quem está nu."                  

         Em 1943, Quintana inicia a coluna “Do Caderno H” na Revista Província de São Pedro. Nos dez anos seguintes o poeta abre as suas gavetas e publica “Canções”, “Sapato Florido”, “Batalhão das Letras”, “Aprendiz de Feiticeiro” e “Espelho Mágico”, conquistando a admiração de público e crítica, em prosa e verso.

           Apesar do reconhecimento e da simpatia de gigantes como Manuel Bandeira, Drummond e Cecília Meireles, o poeta rio-grandense não conseguiu a preferência da Academia Brasileira de Letras em nenhuma das vezes que disputou uma de suas cadeiras. Guardou o triplo fracasso com decepção e alívio. Daí veio o Poeminho do Contra:

       " Todos esses que aí estão
        Atravancando o meu caminho,
        Eles passarão...
        Eu passarinho."


            Quintana foi colunista do Correio do Povo de 1953 a 1977. Ao assédio do engajamento ideológico sobre os seus versos, o poeta respondeu: “Convenhamos, uma boa causa jamais salvou um mau poeta. Essa gente poderá fazer mais pelo povo candidatando-se a vereador .... Eu nada entendo da questão social, eu faço parte dela. ”
            Quando a saúde voltou a ser ameaçada, agora pelos exageros da boemia e por problemas financeiros, um novo aquário de amigos, prêmios e coletâneas cercaram o poeta. Rubem Braga e Paulo Mendes Campos publicaram a “Antologia Poética de Mario Quintana” na celebração dos seus sessenta anos.
            Mario possuía a magia da linguagem e a coragem do mergulho. Viveu em quartos de hotéis por quase toda vida; por doze anos foi o hóspede mais ilustre do decadente Hotel Magestic, no centro de Porto Alegre. Entre o Bar do Edifício do Ouvidor e a Rua da Praia, o poeta enxergava todas as esquinas do planeta. Seus sapatos continuam andando por lá...

           " Um lampião de esquina
            Só pode ser comparado a um              lampião de esquina,
            De tal maneira ele é ele                        mesmo
            Na sua ardente solidão!"


            Após duas décadas de silêncio, a poesia e as crianças venceram a morte e a preguiça do escritor. Em 1975, Quintana escreveu Pé de Pilão. “As crianças se apossaram de mim. Gostaram das minhas rimas”. A partir daí, aos setenta anos e desobedecendo todas as previsões, o poeta iniciou sua fase mais produtiva.

            "Embora idade e senso eu                      aparente
            Não vos iludais o velho que                aqui vai:
            Eu quero meus brinquedos                novamente
            Sou um pobre menino...
            Acreditai!...
            Que envelheceu um dia de                  repente!..."


            No livro "A Vaca e o hipogrifo" e na trilogia "Apontamentos de História Sobrenatural, Esconderijos do Tempo e Baú de Espantos", Quintana exibe o auge da sua maturidade criativa, inaugurando um novo olhar sobre sua infância, seus sonhos, sua solidão, suas mortes. Os temas se repetiam, o poeta se transformava.

            "Não desças os degraus do                    sonho
            Para não despertar os                          monstros.
            Não subas aos sótãos - onde
            Os deuses, por trás das suas                máscaras,
            Ocultam o próprio enigma.
            Não desças. Não subas, fica.
            O mistério está é na tua vida!
            E é um sonho louco este                      nosso mundo..."


            Da imersão solitária no auto-retrato do quarto, nos espelhos dos bares e no reflexo das vitrines das ruas por onde não andou, o poeta trouxe imagens universais. Difícil saber onde começa o observador e termina o escritor. A magia da linguagem nasceu com os olhos certos.

           "Impossível fazer um poema neste momento.                                                                           Não, minha filha, eu não sou a música – sou o instrumento.                                                         Sou, talvez, dessas máscaras ocas, num arruinado monumento.                                                   Empresto palavras loucas à voz dispersa do vento..."

        
            Em 1980, a Academia Brasileira de Letras concedeu o prêmio Machado de Assis ao conjunto de sua obra. Precipitaram-se. Após a homenagem, Quintana publicou mais de uma dezena de livros. Entre eles estão: Preparativos de viagem, A Cor do Invisível, Velório Sem Defunto; e os infantis: Nariz de Vidro, Lili Inventa o Mundo, Sapo amarelo e Sapato furado.

            Os versos de Mario Quintana foram feitos para capturar o leitor de superfície. O humor sutil, os diminutivos e as frases curtas, popularizadas nos jornais e agora na internet, travestem de leveza os segredos sombrios que o poeta conheceu. Basta dedicar mais tempo aos quintanares para sentir a aflição e o gozo de ser humano. 

            "Terra! um dia comerás meus                  olhos...
            Eles eram
            No entanto
            O verde único de tuas folhas
            O mais puro cristal de tuas                      fontes...
            Meus olhos eram os teus                          pintores!..."


            Em 1992, dois anos antes de sua morte, a improvável longevidade ainda permitiu que o olhar de Mario Quintana se espantasse de alegria com a sua Casa de Cultura. Estado e banco reergueram o prédio, o poeta emprestou sua imortalidade. O Poeminho se realizou: o gigante menino azul de aquário não passará.








Comentários

  1. Moisés, que texto incrível! Parabéns!

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  2. Boa noite Moi, obrigado por mais este presente, só poderia ser, no mês de junho. Um grande abraço.

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