Cecília

 

      
Na Tijuca, a morte fez cerco a uma família. O casal não conseguia ter mais que um filho; quando o segundo nascia, o primeiro já não estava. No giro para o século XX, três crianças já não estavam. No sexto mês da última barriga, o pai morreu. A mãe não viveu para ver o terceiro aniversário da única filha sobrevivente, Cecília. Perdas precoces demais para se tornarem saudade.
       
Dona Jacinta Benevides e Pedrina resgataram a menina e uma família nova se formou em outro bairro. A morte não foi, por ora. Cecília cresceu entre as orações da avó açoriana e o folclore alegre da “escura e obscura” babá. Solidão e silêncio por todos os cômodos, carpetes coloridos, espelhos, retratos, engrenagens de relógio, olhos de boneca; a menina guardou tudo dentro de um caldeirão lírico, inclusive a morte.

“E minha avó cantava e cosia.
Cantava canções de mar e de  arvoredo, em língua antiga.

E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos

 e palavras de amor em minha roupa escritas. ”

       A sabedoria se derramou no primeiro papel aos nove anos de idade, sem tristeza, sem revolta, doce, do alto. Olavo Bilac, em pessoa, passou a medalha de ouro para as mãos pequeninas da melhor aluna do colégio Estácio de Sá. Aos dezessete anos a jovem foi eleita oradora da turma de normalistas e contratada como professora do governo do Distrito Federal.
       O carinho com a didática se materializou no livro infantil “Criança, meu amor”. Em 1922, Cecília e seus poemas casaram-se com as ilustrações e com o pintor português Fernando Correa Dias. As três filhas Marias do casal devolveram eternidade à família Benevides Meireles.
       A jovem espiritualista e conservadora decidiu não se engajar ao modernismo que nascia. Sua ligação visceral com a cultura portuguesa incomodava os autores brasileiros. Os críticos mais tóxicos classificaram o rigor métrico, a música e a metafísica de seus poemas, como um simples simbolismo tardio e alienado. Cecília decidiu recolher a publicação de algumas obras, dentre elas, “Espectros” e “Cânticos”.

Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto,
Que as coisas todas serão tuas. ”


       Em 1930, em disputa pela única vaga de professora catedrática da Escola Normal, Cecília defende os avanços da Escola Moderna na tese “O Espírito Vitorioso”. A ênfase, feita por uma mulher, na formação dos professores e no estímulo dos alunos à observação e à experimentação assustaram o conselho julgador. Cecília perdeu a vaga, mas a educação não perdeu a professora.

"Educação para mim é botar dentro do indivíduo, além do esqueleto que já possui, uma estrutura de sentimentos, um esqueleto emocional. O entendimento na base do amor."

       Em 1932, a morte veio buscar Dona Jacinta, a mãe-avó. Em “Elegia” a poeta inunda suas páginas de perda e saudade; triste, grata, serena e órfã.

“Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos.

Tive medo de a enxugar, para não saberes que havia caído.

Vi aquele dia levantar-se inutilmente para tuas pálpebras,

E a voz dos pássaros e a das águas correr,

– sem que as recolhessem teus ouvidos inertes.

Neste mês, começa o ano, de novo

e eu queria abraçar-te.

Mas tudo é inútil:       

eu e tu sabemos que é inútil que o ano comece. “

       Após extenso inquérito sobre as leituras das crianças, em 1934 Cecília fundou a primeira biblioteca infantil do Brasil. O prédio foi totalmente decorado pelo marido Correia Dias, que no ano seguinte, em grave crise de “neurastenia”, resolveu se entregar à morte. A Biblioteca foi desativada pela ditadura Vargas em 1938 sob a acusação de conter livros perniciosos.
       Com três filhas pequenas e em dificuldades financeiras, a escritora aumenta sua atividade como tradutora, cronista e aceita a nomeação como professora de literatura da recém-fundada Universidade do Distrito Federal. Em 1938, o seu livro “Viagem” recebe o prêmio Olavo Bilac da Academia Brasileira de Letras. Os modernistas finalmente se rendem ao universalismo atemporal de Cecília.
       A vigilância da educadora sempre pairou sobre a obra da poeta. “Tenho muito medo da literatura que é só literatura e não tenta comunicar. ” Os versos cristalinos de Cecília tornam os mistérios menos assustadores. A pulsação e a beleza dos seus poemas contagiam o efêmero de eternidade, tratam a finitude com a calma de quem morou na casa da impermanência.

“Se em um instante se nasce e em um instante se morre, um instante é o bastante para a vida inteira. ”

       O novo casamento com o professor e agrônomo Heitor Grilo em 1940, trouxe segurança e cumplicidade à vida de Cecília. A aposentadoria do Estado permitiu maior dedicação aos livros, às viagens e às conferências. Suas grandes obras foram entregues nesse período. “Mar absoluto” e “Romanceiro da Inconfidência” consagraram para sempre a maior poeta brasileira.
       Cecília dedicou a mesma seriedade às carreiras de educadora, folclorista, jornalista, tradutora, conferencista e poeta. Conhecia inglês, francês, italiano, russo, chinês, hebraico e dialetos indo-iranianos, tendo aprendido sânscrito e hindi; traduziu obras de Dickens, Regina Woolf, Perroux, Rilke, Lorca, Li Li po, Du Fu e Rabindranav Tagore.

“Múltipla, venço

 este tormento

 do mundo eterno

 que em mim carrego:

 e, una, contemplo 

 o jogo inquieto

 em que padeço. ”

       A poeta amava as pessoas, a natureza e a vida; dizia ter irmãos lhe esperando em todas as partes do mundo. Fez conferências sobre educação e literatura luso-brasileira em quase todos os continentes. "Não estudo idiomas para falar, mas para melhor penetrar a alma dos povos." Cecília voava com pressa e paciência.

“Que procuras? Tudo. 

Que desejas? – Nada.

Viajo sozinha com o meu coração.

Não ando perdida, mas desencontrada

Levo o meu rumo na minha mão.”

       Suas palavras não gostam de roupas de festa ou brilhos; são leves, simples. A sofisticação vem no aconchego da música, da condução segura e gentil pelas contingências da vida e segue, aos poucos, para o alto, onde nos ensina o pastoreio de nuvens. A poeta levita enquanto espalha ecos, retratos e espelhos entre as estrofes, iluminando o caminho, didaticamente.

“Traze-me um pouco das sombras serenas
que as nuvens transportam por cima do dia!
um pouco de sombra, apenas,
–vê que nem te peço alegria.
” 

       Os versos de Cecília não precisam de humor ou sensualidade, a ternura que transmitem vem da limpidez dos seus olhos verdes sobre a existência. Sem delirar, seus poemas colocam o leitor em comunhão com tudo que envolve a vida: dor, beleza, morte, amor. Seu canto é doce e sério.


“Não te aflijas com a pétala que voa:

também é ser, deixar de ser assim.

Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo seu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos,
ao longe, o vento vai falando de mim.

E por perder-me é que vão me lembrando,

Por desfolhar-me é que não tenho fim. ”

       A doença anunciou sua gravidade dois anos antes e a paciente não reclamou. A morte adiou todos os prazos e lhe deixou tempo para organizar as últimas obras. Trabalhou até o último dia, celebrou internada os sessenta e três anos. Em 09/11/1964, da janela mais alta do Hospital dos Servidores do Rio de Janeiro, Cecília Meireles despediu-se do mar, das nuvens, das montanhas e voltou para o céu; sábia, serena e pronta, como chegou. Os anjos estavam morrendo de saudades.

Comentários

  1. Espetacular!!! Dos melhores textos que você já escreveu, em minha opinião, Moisés. Parabéns! Essas minibiografias poéticas bem que caberiam em um livrinho. Que tal?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que bom que você gostou, André. Essa deu trabalho. A Cecília intimida a gente.

      Excluir
    2. Obrigado pelas sugestões. Usei todas.

      Excluir
  2. Moi, quanta beleza na simplicidade! E que lindo, como cada instante vale uma vida. Não é mais necessário ter medo das incertezas à frente. Parabéns e um grande abraço do Carlinhos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Carlinhos, eu tenho a impressão que essa Cecília era anjo de verdade.

      Excluir
  3. Texto maravilhoso, poético. Lindo, lindo...

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Por quê?

Relíquia

Cinzas acesas