CDA
– Pai, você é capaz de amar? Você ama?
A pergunta pegou o velho de surpresa. Ele gaguejou, raspou a garganta, reclamou da pergunta e quase cancelou a conversa, mas confessou:
– Não, não sei amar como gostaria.
Provocado a todo momento por Maria Julieta, o poeta falou sobre política, Deus, morte e sobre a angústia que sempre lhe acompanhou. A conversa foi encerrada com a nomeação da filha como sua testamenteira intelectual, um caminho natural...
O menino se encantou pela beleza das palavras antes de aprender a ler. As letras impressas no papel se justificavam antes de fazerem sentido, apenas pela beleza. Carlos iniciou o treino do olhar observando as monótonas montanhas de Itabira serem dilapidadas.
Em 1920 a família se mudou para Belo Horizonte e o jovem conseguiu o seu primeiro emprego como redator no Diário de Minas. Na Livraria Alves e no Café Estrela, Carlos encontrou amizades que carregou por toda vida; entre eles estavam Pedro Nava, Alberto Campos e Abgar Renault. – Os amigos me libertaram da anarquia e do desânimo que existia em mim.
Graduou-se em Farmácia por exigência do pai, mas nunca desempenhou a função.
– Será verdade? Vou manipular as porções que cortam a dor do próximo? Não posso crer. Fico apenas na moldura do quadro de formatura, para preservar a saúde de todos.
No Grande Hotel de Belo Horizonte, Carlos se encontrou com os fundadores do modernismo. Mário de Andrade orientou seus primeiros passos pela liberdade literária. O jovem poeta se correspondeu com o autor de Macunaíma até 1945, quando este veio a falecer. As cartas foram publicadas em 1982 no livro "Lição do amigo".
Em 1925, Drummond se casou para sempre com Dolores. Dois anos depois nasce Carlos Flávio que sobreviveu apenas por quarenta minutos. Maria Julieta nasceu em 1928, quando o poema "No meio do caminho" foi publicado na revista Antropofagia, trazendo fama e uma incômoda pedra no sapato do poeta.
Em 1930, ano em que publicou "Alguma poesia", seu primeiro livro, Drummond entra para o serviço público. Em seguida foi ser chefe de gabinete do amigo Gustavo Capanema, que em 1934 é nomeado Ministro da Educação e Saúde do governo Getúlio Vargas.
Drummond mudou-se com a nova família para o Rio de Janeiro. No Distrito Federal, o burocrata manteve a sua atividade como cronista no Caderno da Manhã e, posteriormente, no Jornal do Brasil. O compromisso de publicar três vezes por semana, exercitaram o olhar do poeta por sessenta e cinco anos. Enxergava a crônica como um gênero divertido e leve.
– A função do caderno dois é suavizar o terror do primeiro.
No final dos anos 1930, criticado por trabalhar para o Estado Novo, Drummond reage “de mãos dadas” com esperança da revolução socialista publicando "A Rosa do Povo" em 1945. O livro inaugura a fase mais produtiva do autor, que se torna editor da Tribuna do Povo a convite de Luís Carlos Prestes.
Seis anos depois, sua linguagem se transfigura de descrença com a política e com a história. Ama demais a palavra para submetê-la a ordens. Em "Claro enigma" o poeta está maduro e livre para cantar o absurdo da existência. As aflições do excesso de consciência afloram com mais discernimento.
– Não, meu coração não é maior que o mundo. É muito menor. Nele não cabem nem as minhas dores. Por isso gosto de me contar.
– Pai, você então escreve para desabafar? É como uma terapia barata?- ataca Maria Julieta.
– Durante muito tempo escrevi poemas para exorcizar meus demônios. José é o poema de um suicida que não se suicidou. Eu era um homem propenso a pensamentos sombrios.
“... sem alma, corpo, és suave. ”
Com a trilogia Boitempo, Drummond fez as pazes com Itabira e com os Andrade. As histórias são contadas pelo menino que o velho poeta se tornou, não pelo que foi. Na infância resignificada, o pessimismo irônico dá lugar a um humor leve e fácil, gostoso de receber, como um presente de avô. O passado lhe dói menos.
A pedra estava no fim do caminho. Em 05/08/1987, cinco anos após a entrevista, Maria Julieta é levada pela morte antes de envelhecer. Teria sido o medo dessa tragédia a aflição que atormentou a alma do poeta por sua toda vida?
Drummond morreu de infarto após doze dias. Não aceitou existir sem uma palavra que o definisse. O pai que perde uma filha é um ser inominável. Não é para ser. A luz apagou e sim, o poeta era capaz de amar.
Carlos não gostava de ser grande, mas a timidez, a voz hesitante e o olhar cabisbaixo brigavam com a vastidão de sua obra e lhe faziam ainda maior. Nenhum outro escritor brasileiro pode ser identificado somente pelas iniciais do nome.
Os poemas, as crônicas e os contos de CDA são poções mágicas que tratam sofrimentos universais. O melhor dos farmacêuticos não conseguiria elaborar remédios tão poderosos. O protagonista dos seus poemas sempre foi ele, mas as inquietudes de Drummond falam de todos nós.
"Caminho por uma rua que passa em muitos países ... minha vida, nossas vidas formam um só diamante. ”
Brilhante, como sempre!
ResponderExcluirMoi, quanta riqueza habita na simplicidade! Um grande abraço do Carlinhos.
ResponderExcluirMuito muito muito bom!!!
ResponderExcluirMuito obrigado meu amigo.
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