Obscena senhora
Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu em Jaú no dia 21 de abril de 1930. O nome forte e o sobrenome rico não a livraram do preconceito e da solidão. Herdeira única da esquizofrenia do pai e do duplo desquite da mãe, a menina se refugiava entre as folhas de seus cadernos de poesia e no vinho da sacristia do colégio interno. As freiras não conseguiram transformar o seu amor-próprio em culpa ou autopiedade.
A moça adolesceu irresistivelmente
linda e inteligente, covardemente sensual e atrevida. Livre, libertina, não se
poupou de paixões, joias, viagens, vestidos e champanhes de luxo. Durante o
curso de direito no Largo São Francisco, mostrou seus primeiros poemas à Lígia Fagundes
Teles, incentivadora de primeira hora e amiga de toda vida.
Em 1965 a poesia exigiu lugar e
tempo na concorrida vida da bela socialite. Hilda Hilst, refém e grávida apenas de
seus livros, retornou a terra de sua herança para construir, plantar e escrever.
Na Casa do Sol, entre dezenas de cães, namorados e amigos, figueira, espíritos e extraterrestres, Hilda escrevia com a certeza de que não seria decifrada. Escrevia para si. Escrevia para não enlouquecer.
Alimentou seus poemas com o experimentalismo
e a transgressão com que viveu. Seus versos revelam os sintomas e os impulsos que
seus ódio-amores tatuaram em em sua carne. O estudo compulsivo de filosofia,
metafísica e psicologia, deu a autora o repertório para entender e descrever o
que sentia. Hilda era o objeto e a observadora.
Influenciada por James Joyce e Samuel
Beckett, seus textos se destacaram pelo intenso fluxo de consciência e o
misticismo sensualista. No entanto, o hipertexto e a realidade fraturada,
técnicas que escritora utilizou desde os anos 1960, só foram se tornar
confortáveis após o surgimento da internet.
Hilda não cantou o cotidiano, escreveu
sobre o humano, o sagrado e o pagão. Alguns de seus poemas fazem lembrar a
conversa íntima e respeitosa entre uma beguina e Cristo. “ Graças a Deus não O
encontrei. Iria morrer de medo”, respondeu sorrindo, quando perguntada se o
contato existia.
Incomodada com o risco de os
leitores nunca a alcançarem, Hilda experimentou outros gêneros. Foi brilhante,
mas igualmente densa e enigmática, na dramaturgia e na ficção. Aos sessenta
anos “a santa levanta a saia”, assustando toda comunidade literária com seus
polêmicos livros pornográficos. “As
pessoas precisam ser acordadas”, justificou-se com seu sarcasmo calculado.
A obscena escritora nunca teve
dúvida sobre a qualidade da sua obra. Infelizmente, o início do seu
reconhecimento veio tarde e acompanhado pelos derrames e fraturas do corpo. Agradeceu
em frases entrecortadas pela falta de ar, sentiu-se sinceramente honrada mesmo
assim.
Em 2004,
vestindo uma túnica indiana, provavelmente sem calcinha, Hilda Hilst partiu
em direção ao Planeta Marduk, deixando na Casa do Sol uma morada eterna para artistas, cães e figueira. Os Deuses estavam morrendo de saudades.
08/12/2020

Mais uma vez Moisés brilha como especialista em biografias. O resumo da Hilda contem o essencial, nem mais nem menos. E com toques muito pessoais, como esse "provavelmente sem calcinha". Parabéns outra vez!
ResponderExcluirObrigado, amigo querido.
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