A barra mais pesada que tiveram
Seis e trinta da manhã, o despertador avisou pela terceira vez. Os postes do início da W3 Sul ainda estavam acesos e os primeiros ônibus começavam a chegar ao centro da capital. Faltava menos de quarenta minuto para o início de mais um plantão de vinte e quatro horas. Melhor correr.
Empurrou o marido da cama, tomou um banho
rápido, deu beijinhos nos gêmeos e desceu as escadas da sobreloja mastigando um
pão de queijo dormido. Arrumou os cabelos enquanto caminhava para o Hospital de Base. O plantão de domingo nunca era tranquilo. Os exageros do fim
de semana lotavam as macas do pronto socorro.
Mônica estava no terceiro ano de
residência. Conciliar as tarefas de mãe com a especialização em neurologia era
quase impossível. A maioria das médicas interrompia a carreira por algum tempo.
Ela não teve essa opção; sua mãe nunca concordou com o seu casamento. Não
ajudava. O marido cansou de levar os bebês para serem amamentados no hospital.
A empatia da jovem doutora encantava a
todos os médicos e enfermeiras. Ela escolheu uma área difícil. Lidar com
pacientes angustiados por incertezas e sequelas neurológicas sem ter muito a
oferecer, endurecia o coração da maioria dos especialistas. Mônica conseguia
ser sincera e otimista nos piores momentos. Sentia falta da meditação e dos
filmes da Cultura Inglesa, mas em breve tudo melhoraria.
Eduardo ainda dormia no tapete ao lado da
cama, quando Bia veio cobrar o seu café da manhã e a promessa de ir ao clube. O
pequeno Leo acordou assustado; puxou à mãe, tinha pesadelos. As crianças
completaram quatro anos e a quitinete estava encolhendo. A casa no condomínio
irregular do Colorado II ficaria pronta no próximo ano.
A família era valente. Transformaram a
moto e o "camelo" em uma espaçosa Caravan 78, cor-de-abóbora. Iam ao parquinho do
foguete, ao Nicolândia e ao Jardim Botânico. Eduardo não era mais o boyzinho da
música. Além do leva-e-traz diário com as crianças, intercalava o trabalho em
um posto gasolina do setor hoteleiro sul com o curso de Processamento de Dados
na UnB. Seu rendimento melhorou, mas perdia pelo menos uma matéria por
semestre. Prometeu a Mônica que terminaria o curso. Melhor cumprir.
Os três chegaram ao clube pouco depois das dez. O sol e a secura do agosto não impediram horas de futebol, pique-pega
e piscina. Interromperam para o almoço. Bia estava com fome. Desceram para a
churrasqueira mais próxima do lago. Aproveitaram a ausência da mãe para se
fartarem de pão com linguiça, catchup, fanta uva e chicabom. Exaustos, cochilaram no gramado embaixo das árvores. A partir daí as lembranças se tornaram menos
nítidas. Melhor esquecer.
Os gritos aflitos acordaram Eduardo. Uma
senhora dizia ter visto uma criança desaparecer no lago. Ele e dois outros homens
passaram a garimpar as águas turvas do Paranoá no local apontado. Segundos
preciosos foram se perdendo. Todos já pensavam em desistir, quando Eduardo
avançou para o fundo e sentiu a sua perna esbarrar no corpo. Melhor correr.
Levou a criança rapidamente para margem.
Somente quando iniciou as manobras de reanimação, ensinadas pela esposa,
percebeu que a vítima era o próprio filho. Minutos inomináveis se passaram até
a chegada da ambulância. O pequeno Léo foi levado ao Hospital de Base em estado
crítico.
Horas, dias e semanas de angústia e
incerteza. Medo. O menino permanecia no coma em prognóstico sombrio. Ninguém
arrancava Mônica da beira do leito. A
esperança se esvaia. Impossível saber como a criança acordaria. Melhor não
pensar.
Eduardo abandonou o trabalho e a
universidade. Não conseguia olhar nos olhos da esposa. Onde estava quando as tartaruguinhas atraíram
o filho para o lago. Daria tudo para apagar aquele dia da sua memória. Voltar no
tempo, não ter saído de casa, não ter pegado no sono. Melhor não existir.
Bia parou de perguntar pelo irmão.
– Acorda, doutorinha! Tem paciente pra senhora no
box da emergência. Não precisa correr. Já vi que não é grave. – gritou
baixinho, a enfermeira, no repouso médico. Inês sabia como acordar um médico
sem assustá-lo, quando queria.
Não adiantou. Mônica se levantou agitada
e confusa. Vestiu o jaleco e olhou para o relógio: cinco horas e dezesseis
minutos. A segunda-feira amanhecia, enfim. Caminhou pelo silêncio e pelo vazio,
no corredor de acesso ao pronto-socorro. Não arrumou os cabelos, atendeu a
paciente rapidamente. Terminou o plantão, a residência terminaria depois.
Melhor não correr.
21/11/2019
Isso aconteceu antes ou depois que o filhinho do Eduardo ficou de recuperação? 🤔
ResponderExcluirBem antes. Dizem que foi o vício no Playstation.
ExcluirAmigo, forte! Mas brilhante!
ExcluirOnde é que dá like, aqui?!....rs
ResponderExcluirAiii, q triste!
ResponderExcluirÉ o que dizem há séculos: "Ser pai é padecer no paraíso." Acho que essa frase deve ser do Adão mesmo...Parabéns pelo texto Mói
ResponderExcluirObrigado, Euler. Adão foi um herói. A culpa foi da Eva.
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ExcluirE a maçã? Será que ela não estava "batizada"?
Parabéns, Moisés!!! Muito bom!!!
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