Sua vaca!




            Em meados da década de 90, eu estava de volta a Brasília depois de passar alguns anos fora, concluindo a minha formação profissional. Encontrei a cidade bem diferente. Alguns bairros novos no centro e muitas cidades satélites recém-inauguradas. Tínhamos, finalmente, engarrafamentos e filas nos cinemas. Eu e minha cidade havíamos terminamos a adolescência. 

 Fui visitar um irmão que, na ocasião, já tinha um casal de filhos lindos e bucólicos. O menino devia ter uns oito anos e a mais nova, minha afilhada, não passava dos seis. Rapidamente fui inserido naquele inóspito habitat. 

Janelas embrulhadas por redes de proteção, pedaços de biscoitos e brinquedos espalhados pelo chão, um interminável vídeo da Xuxa no volume mais alto e um cachorro salsichinha que teimava em não sair do meu colo; um caos que só um solteiro sem filhos é capaz de perceber, e que os casais jovens adoram compartilhar, numa mistura de orgulho e desespero. 

Eu estava conseguindo disfarçar o meu espanto e a visita evoluía relativamente bem, quando aconteceu o pior. Fiquei sozinho na sala por momento, enquanto o meu irmão e a minha cunhada foram para cozinha finalizar a lasanha a bolonhesa.

– Sua vaca! – ouvi?!

O grito parecia ter vindo do quarto das crianças. Recusei-me a acreditar, mas a confirmação veio logo em seguida:

 – Você é uma vaaaaaaaaaaaca!!!

Não tive mais dúvida. Foi ele mesmo. Que menininho bruto! Lembro que tive brigas feias com meus irmãos, mas aquele grau de agressividade estava longe de ser aceitável. Definitivamente essa não era a melhor maneira de se tratar a irmã mais nova. Fiquei tão chocado que não tive coragem de discutir o assunto durante o jantar. Mesmo porque, logo depois, as crianças se juntaram a nós, alegres e saltitantes, como se nada tivesse acontecido.

Mas fiquei realmente preocupado. Esperei algumas semanas e abordei o assunto com o pai do meliante. Foi um alívio. Meu irmão, com um meio sorriso tranquilizador, me explicou que seus filhos vinham brincando assim há alguns meses. Imitavam o desenho animado de maior sucesso da época:  “A vaca e o frango”. Os bichos eram irmãos de sangue e, por incrível que possa parecer, se amavam e eram super-companheiros.

Passei a desconfiar que, enquanto eu me especializava, o universo havia mudado completamente. Afinal, sou de uma época em que os desenhos animados deviam trazer sempre os heróis, a valorização da família e aquela mensagem educativa no final. Estava claro que eu precisava me atualizar. Uma vaca irmã de um frango?!

Mesmo tendo repensado seriamente a necessidade de ter filhos, eu tinha que me adequar urgentemente a nova ordem mundial. Passei na vídeo-locadora, fui para casa e assisti vários episódios da série de uma vez. Finalmente compreendi a ira do pobre frango.

A vaca, sempre que queria chamar a atenção do irmão, se “auto-ordenhava” e lançava um farto jato de leite no seu rosto, berrando:

 – Seu Fraaaaaango!!!

Que vaquinha cretina.

                                                                                                                    08/05/2018

Comentários

  1. Crônica leve, bem humorada, mesmo tratando de assunto sério. O fecho ficou ótimo!!! Já pode publicar na Folha...

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