Poeta em prosa


       Aqui vai um pequeno desafio. Tentem identificar o autor desta obra.


“Meu avô ainda não estava morando na árvore.

Se arrastava sobre um couro encruado no

assoalho da sala.

O vidro do olho de meu avô não virava mais e

nem reverberava.

Uma parte estava com oco e outra com arame.

Quando arrancaram das mãos do Tenente

Cunha e Cruz a bandeira do Brasil, com a

retomada de Corumbá, na Guerra do Paraguai,

meu avô escorregou pelo couro com a sua

pouca força, pegou do Gramofone, que estava

na sala, e o escondeu no porão da casa.

Todos sabiam que o Gramofone estava

escondido no porão da casa, desde o episódio.

Durante anos e anos, poucos desceram mais

àquele porão da casa, salvo uns morcegos

frementes.

Em 1913, uma árvore começou a crescer no

porão, por baixo do Gramofone.

(Os morcegos decerto levaram a semente.)

Um guri viu o caso e não contou pra ninguém.

Toda manhã ele ia regar aquele início de planta.

O início estava crescendo entrelaçado aos

pedaços de ferro do Gramofone.

Dizem que as árvores crescem mais rápido de

noite, quando menos são vistas, e o escuro do

porão com certeza favorecia o crescer.

Com menos de dois anos, as primeiras folhas

da árvore já empurravam o teto do porão.

O menino começou a ficar preocupado.

O avô foi acordado de repente com os esforços

da árvore para irromper no assoalho da sala.

Escutavam-se também uns barulhos de ferro —

deviam de ser partes do Gramofone que

estertoravam.

No Pentecostes, a árvore e o Gramofone

apareceram na sala.

O avô ergueu a mão.

Depois apalpou aquele estrupício e pôde

reconhecer, com os dedos, algumas reentrâncias

do Gramofone.”

       Pausa 1: Já descobriram quem é o autor desse conto? Realismo fantástico bem escrito assim, nos conduzem direto à Gabriel Garcia Márquez, não é? Vamos seguir:

 “A árvore frondara no salão.

Meu avô subiu também, preso nas folhas e nas

ferragens do Gramofone.

Pareceu-nos, a todos da família, que ele estava

feliz.

Chegou a nos saudar com as mãos.

O pé-direito da sala era de dois metros e a telha

era vã.

Meu avô flutuava no espaço da sala entrelaçado

aos galhos da árvore e segurando o seu

Gramofone.

Todos olhavam para o alto na hora das

refeições, e víamos o avô lá em cima, flutuando

no espaço da sala com o rosto alegre de quem

estava encetando uma viagem.

Tornava-se difícil para mim levar alimentos

para o meu avô.

Eu tinha que trepar na árvore que agora

começava a forçar o teto da sala.

Havia medo entre nós que as telhas ferissem de

alguma forma o meu avô —

ou então que o sufocassem entre os galhos e o

Gramofone.

Eu estaria com sete anos quando a árvore furou

o telhado da sala e foi frondear no azul do céu.

Meu avô agora estava bem, sorrindo de pura

liberdade, pousado nas frondes da árvore, ao ar

livre, com o seu Gramofone.

Eu tinha medo que o meu avô ali pegasse um

resfriado.

Tornou-se mais difícil levar comida para ele.

Algumas formigas e alguns pássaros roubavam

arroz de seu prato.

Aqueles passarinhos pousavam do mesmo jeito

nos galhos e nos braços de meu avô.

Todos ficavam admirados de ver o avô morando

na árvore. ”


      Pausa 2: Surgiram algumas cenas que saem um pouco do universo mágico de Gabo. Pássaros fazendo ninhos em um gramofone enferrujado fundido a uma árvore que invade um porão abandonado, suspendendo o velho avô?! esta seara parece ter outro dono. Certo jovem escritor moçambicano agora parece se encaixar melhor na autoria. Continuemos: 


 “Aquele Gramofone, como eu imaginara, não

deveria mais tocar música, pois que estava todo

enferrujado e bosteado de arara.

Quatro dias depois de um novo Pentecostes, caiu

sobre o assoalho da sala, onde viviam os outros

membros da família, um ovo! pluft e se quebrou.

 Era um ovo de anhuma.

(A anhuma é um pássaro grande, que muda de

prosódia quando alguma chuva está por vir.)

De forma que quando a prosódia da anhuma

mudava eu corria a levar um agasalho para o

meu avô.

Aquela ave, a anhuma, depois nós descobrimos,

fizera o seu ninho justamente no tubo do

Gramofone.

E por ali o ovo escapou e desceu (pelo tubo

furado) e pluft se quebrou no assoalho da sala.

Meu avô percebeu o barulho do ovo que se

quebrou lá embaixo.

Parte do olho dele estava com oco e parte com

arame, como já disse.

Doze dias antes de sua morte meu avô me

entregou um CADERNO DE APONTAMENTOS.

Os pássaros iam carregando os trapos

esgarçados do corpo do meu avô.

Ele morreu nu. ”


         Pronto! Agora as digitais de um poeta brasileiro estão por toda parte. Quem é? 
Esse conto está no início do livro CONCERTO A CÉU ABERTO PARA SOLOS DE AVE, publicado em 1991 por Manoel de Barros.
        Essa obra é uma das provas de que o imenso talento do nosso querido poeta poderia ter facilmente navegado por outros campos da literatura. 
Pena Manoel ter morrido tão moço. Cem anos foram pouco para sua paixão pela linguagem. Sua mente, seus cadernos e seus vidros de maionese gestavam uma infinidade de frases órfãs de publicação.
       O conto está impregnado da obsessão do autor pela comunhão entre a natureza e o estado degenerativo de coisas e pessoas. Nenhum outro autor explorou tanto a conexão do fim com o todo. Seu foco de narrativa sai do olhar humano. A ferrugem, o envelhecimento e o abandono descrito nesse texto, nos mostram o momento em que a morte passa a ser o destino mais digno e sadio.

                                                                  03/09/2020

 

Comentários

  1. Entendo amigo, que você gostou muito de ler Manoel de Barros. Teve grande admiração pelo seu despojamento de moleque.

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