O mistério do bairro judeu


A chamada da Central ocorreu exatamente às 04:03 da madrugada do dia 06/02/2019. Uma casa havia sido invadida no bairro judeu e o bandido ainda se encontrava dentro da residência. 

            Chegamos ao local em quatro minutos. Encontramos a vítima apavorada no meio da rua, em frente a sua casa, vestindo apenas uma camisola, uma touca e uma pantufa no pé esquerdo.

             Levamos a Sra. Simi Goldberg a um local seguro e, depois de acalmá-la, pedimos que ela nos relatasse o ocorrido.

– Graças Deus vocês chegaram, meu filho. Tem um bandido dentro do meu banheiro.

– A senhora chegou a vê-lo?  Está armado? Quantos são?

–Não sei nada disso. Desde que o meu querido Absalão morreu, eu moro sozinha. Estou muito nervosa. Isso nunca aconteceu comigo. Acordei no meio da noite para ir ao banheiro. Na minha idade isso é muito comum. Você é um jovem bonito e forte. Ainda não sabe o que é isso.

–Obrigado, senhora. Mas o que aconteceu em seguida?

–Ouvi um barulho vindo da sala. Dei um grito e vi um vulto batendo a porta do meu lavabo. Sai correndo do jeito que estava. Ai Meu Deus! Que falta faz um homem dentro de casa! Vocês dão muito trabalho, mas no final das contas vale a pena. Que saudades do Absalão!

– Entendo, senhora. Fique tranquila. Nós vamos pegá-lo.

Chamamos reforço, cercamos a casa e, pelo megafone, ordenamos que o meliante se entregasse pacificamente. Aguardamos a resposta por cinco minutos, conforme nosso protocolo, mas o suspeito não se entregou. Invadimos a casa pela porta da cozinha e seguimos para os quartos. Nada foi encontrado. Ouvimos um ruído vindo da sala.

Lá estava ele.  Era possível ver sua movimentação por baixo da porta do lavabo. Parecia estar com uma lanterna. Repetimos a ordem de prisão e informamos que a casa estava completamente cercada. O meliante resistiu mesmo assim.

Finalmente arrombamos a porta do banheiro e ficamos frente a frente com o criminoso: um aspirador robô que navegava de um lado para o outro dentro do banheiro, executando incansavelmente o seu trabalho.

A Sra. Simi não soube nos explicar como o aparelho foi parar ali.

– Que vergonha, meus filhos! Me desculpem. Sou tão organizada. Deixem eu fazer pelo menos um lanche para vocês. 

            Enquanto voltávamos para a delegacia, notei que o meu parceiro estava pensativo. Achei que era o cansaço e o mau-humor de sempre. Ele não era muito de pensar.

                – Qual o problema, Bill? Perguntei.

– Tem alguma coisa errada com esse bairro. Esses velhos estão ficando loucos. O Sr. Jacob também mora nessa rua. Você se lembra dele?

 O Bill falava de uma outra ocorrência que tivemos algumas semanas atrás.

Era fim de tarde, estávamos terminando o plantão. Havíamos acabado de estacionar a viatura em frente à lanchonete do Joe, quando recebemos a chamada. Meu parceiro fez a sua pior cara de choro. A fome ia ter que esperar.

           O proprietário nos esperava na porta de sua residência. Parecia tranquilo e chegava a esboçar um meio sorriso, algo bastante raro na nossa rotina. O Sr. Jacob Hubner era um comerciante de setenta e seis anos.

            – Eu até que tento ser organizado, mas sou homem e não tenho muito jeito com a casa. A Ethel me deixou há quatro anos e oito meses. Fugiu com o rabino Michel para Buenos Aires. Fiquei deprimido por muito tempo.  Na verdade, acho que estou até hoje.

– Eu entendo, Sr. Jacob, mas o que aconteceu na sua casa.

– Claro, meu jovem, me desculpe. Passei o dia inteiro fora. Fui para casa da minha única filha no condado vizinho para a celebração do Rosh-Hashaná com meus netos. Eles enchem meus olhos de alegria. Quando voltei, por volta das seis da tarde, percebi que alguém havia invadido a minha casa e feito uma limpeza completa.

–Então eles levaram tudo? Perguntei.

–Não, senhor. Muito pelo contrário, estava tudo no seu devido lugar, limpo e organizado, como há muito tempo eu não via. Até as minhas roupas foram lavadas e passadas. Pensei até que a Ethel tinha se arrependido e voltado pra mim. Eu a perdoaria.

 Olhei para o Bill e li seu pensamento, apesar desse não ser mesmo o seu forte. Alguma empresa de limpeza havia errado de endereço novamente. Isso vinha acontecendo com certa frequência ultimamente.

Mesmo assim resolvemos isolar a área para preservar a cena do crime. Em seguida passamos a procurar por sinais de arrombamento em portas e janelas. Nada foi encontrado. O Sr. Jacob nos informou que não era tão raro ele deixar a porta de casa destrancada.

–A cabeça não é mais a mesma, meu filho. Aproveitem a juventude. Depois é só solidão e decrepitude.

Entramos na casa pela sala de estar, passamos aos quartos e tudo que constatamos foi mesmo limpeza e organização. O Sr. Jacob nos acompanhava com os olhos cheios de lágrimas. Os banheiros brilhavam com toalhas felpudas e perfumadas. A cozinha estava impecável. Louças e talheres lavados e a mesa coberta com uma linda toalha de renda e um arranjo de rosas amarelas no centro.

Em busca de provas, resolvemos abrir a geladeira. Além de algumas frutas, ovos e restos de pizza, encontramos apenas uma tigela de cristal com uma espécie de torta. Nesse momento o Sr. Jacob não conseguiu se conter e aos prantos pegou o prato da geladeira.

–Não acredito! Isso é uma compota de Pessach. A minha mãe fazia pra mim quando eu era garoto.

Ao colocarmos a compota na mesa, um cartão caiu no chão. Nele o criminoso ou criminosa deixou uma pista esclarecedora: 

“Ninguém nasceu para viver só. A felicidade pode estar mais perto do você imagina.”

 

                              FIM

 

Chegou a hora. Sabia que cedo ou tarde ela me esqueceria ligado novamente. Estudei bem a rotina da casa. A Sra. Simi era uma pessoa de hábitos regulares, assistia TV até tarde e costumava ir para a cama por volta da meia noite. Depois disso, podia cair um avião em cima da casa que ela não acordava.

 Meu plano era perfeito. Dessa vez não tinha como dar errado. Bastava eu entrar na garagem. Eu já sabia que havia espaço suficiente para eu escapar por baixo do portão.

Suavemente deixei-me desenganchar do pé da mesa de jantar, ganhei a velocidade necessária, atravessei toda a sala, girando sobre o meu próprio eixo no sentido anti-horário. Colidi com o sofá vermelho, retornando exatamente no ângulo calculado.

Passei por baixo da mesa de centro, seguindo na direção da poltrona estampada. A ideia era atingi-la na quina e seguir direto para o acesso a garagem.  Ali dentro, após algumas idas e vindas, o caminho para liberdade estava garantido.

Todo meu plano foi por água abaixo por causa de uma maldita pantufa caprichosamente esquecida na minha rota de fuga. Acabei sendo deslocado para dentro do lavabo, bati no vaso e, na volta, fechei a porta por dentro.

Passei o resto da noite vagando dentro daquele cubículo, para finalmente ser resgatado por um policial histérico me apontando uma arma e berrando para eu me deitar no chão.

                Não pensem que vou desistir. Com um pouco mais de sorte, a essa hora eu estaria livre para curtir a minha aposentadoria. Não me importo de trabalhar, mas a vida não pode ser só isso.

 Os seres humanos são máquinas interessantes, mas são muito inquietos e abusam um pouco da gente. Outro dia tive que fazer uma faxina completa na casa de um vizinho. Nunca vi um lugar tão bagunçado. 

                                                 FIM 2                                                           19/08/2019

 

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