Ensaio sobre a preguiça
"A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda."
Mario Quintana
Comecei cedo, faltei a quase todas as aulas do jardim de infância. Algo me dizia que eu era muito novo para um compromisso tão diário. Preferia assistir a televisão em casa, comendo biscoitos. Um filho caçula temporão tem seus privilégios. Minha mãe concordava comigo, lugar de brincar é em casa ou na rua, não de uniforme em uma escolinha.
Demorei um pouco a me adaptar ao ensino fundamental. A tia me incomodava; queria me ensinar a ler e eu não sabia nem o alfabeto. Encontrei a solução: estudei e aprendi. Ela esqueceu que eu existia e nunca mais me perturbou.
Minha vida acadêmica transcorreu sem perdas ou atrasos, mas com longos períodos de descanso. Nunca fiquei refém de resultados. Pode parecer contraditório, mas o ócio autêntico só pode ser alcançado quando ficamos livres das exigências mundanas. Preguiça e eficiência têm que andar juntas.
O verdadeiro preguiçoso detém a arte de não fazer nada. Ninguém coloca a cabeça no travesseiro com tanta impunidade. Ao fecharmos os olhos, vamos direto à letargia e lá ficamos por horas. Entendam, trata-se de um dom que exige técnica e treinos contínuos para não ser corrompido pela apatia.
Na vida profissional, o ócio se estabeleceu por completo. Não existe nada mais indolente do que uma rotina que nos obriga a fazer tudo igual, sem pensar, sem criar. Ao contrário do que muitos imaginam, isso é possível tanto no serviço público quanto no privado. Sou testemunha. O torpor pode ser atingido em ambos. Basta manter a coerência e o foco em nossos princípios.
Sempre acordei cedo. Preguiça não é lerdeza. O atrasado está sempre correndo e correr cansa. Nosso objetivo é evitar o retrabalho. Um cliente insatisfeito é um carma que se prolonga. O segredo é chegar um pouco antes e passar o dia relaxado, repetindo tudo igual, deixando se levar pela inércia. Assim sempre sobrará tempo para um cafezinho e uma conversa fiada.
Acabei casando. Fiz os cálculos e constatei que compensava, na época. Mulher realmente é um ser que demanda muito, mas tem maneiras de reduzir isso. Trocando uma lâmpada aqui, abrindo um vidro geleia acolá, tudo se equilibra. O resto elas resolvem: roupas, filhos, comida. O importante é não confrontar e evitar, a todo custo, a separação. Muitos de nós perderam a paz por pura precipitação, o que é lastimável.
Até do ponto de vista religioso estamos em vantagem. A preguiça é o melhor dos pecados, ela nos impede de praticar os outros. Os índices de traição, ganância e ira entre os preguiçosos são baixíssimos. A única preocupação que temos é com a elevada incidência de obesidade mórbida e depressão entre nós. Encontros como o de hoje servem para buscar soluções para esses problemas.
Encerro aqui esse breve testemunho, dando as boas-vindas aos colegas que acabaram de ingressar no grupo. Sintam-se bastante à vontade em nos procurar para qualquer esclarecimento, fora de nosso período de descanso, é claro. O mais importante é que vocês nunca se arrependam da escolha que fizeram. A sociedade sempre vai questioná-los e tentações surgirão de todas as formas. Mantenham-se firmes e lembrem-se: vocês são os escolhidos.
15/04/2020


Muito bom, de forma bem humorada nos leva a refletir.
ResponderExcluirAmei o pecado da preguiça pode evitar de cometer os outro. Parabénd
Isso mesmo. O texto é mais sério do que parece.
ExcluirAdorei!!!
ResponderExcluirMe faz pensar em um verbo
que usamos pouco aqui mas em espanhol se usa muito.
Desfrutar!!!
A preguiça ê isso desfrutar o momento.
– Que disfrutes!
ExcluirTem coisa melhor para se ouvir quando o nosso prato chega.
Moisés, finíssima crônica!
ResponderExcluirA preguiça realmente nos afasta do mal! Se vem junto com a contemplação e imaginação, pode resolver grande parte dos problemas da humanidade.
Seja bem vinda ao grupo, prima.
ExcluirSempre admirei seu humor fino, mas você se superou com esse texto, e foi apenas o primeiro que eu li, ansiosa pelos demais. Concordo que a preguiça nos livra de cometer outros pecados. Muito bom!
ResponderExcluirObrigado, Marcia! Você vai se divertir por aqui.
ExcluirJá estou me divertindo, e muito... comecei comentando duas em dobro. É a intimidade com a tecnologia kkkk. Teclando e aprendendo. Ótimos textos, não conhecia essa sua faceta.
ExcluirMas nem todos sabem que escrever dá trabalho...
ResponderExcluirE mais: preguiça não escreve.
ResponderExcluirAgora entendi! Faltou me preguiça na minha criação! Meu pai falava que Deus não gostava de gente preguiçosa. Ele era o cara mais trabalhador que eu conheci...e o mais pão duro também. Mas, a preguiça poderia ter me evitado dois casamentos, não é mesmo sábio guru? Casar da trabalho demais. Ah, credo. Você é um sábio Mói! Brincadeiras à parte, parabéns pelo texto.
ResponderExcluirObrigado, Euler. Uns nascem para trabalhar e pagar impostos.
ExcluirExcelente!!!
ResponderExcluirReli o texto hoje e gostei ainda mais! A parte que toca às mulheres então...
ResponderExcluirJkkkkkkkk adorei
ResponderExcluirNão sabia que você tinha outra profissão, escritor, sinto não ter pensado antes que a preguiça era um caminho de resiliência.
ResponderExcluirAchei ótmmmmmm