Manoel

          Manoel de Barros veio ao mundo com um “aparelho de ser inútil” de última geração. Nasceu poeta pronto. Foi portador, refém e escravo desse “dão”. Pouco poderia ter feito para escapar, se quisesse. O caminho que seguiu durante a primeira metade de sua vida foi apenas para conhecer as técnicas que iria desobedecer.

A solidão do colégio interno na cidade grande, o mergulho nas profundezas da literatura e da linguagem, o convívio com índios e artistas consagrados serviram para afinar o timbre do seu lápis. No retorno ao pantanal de sua infância, encontrou espaço e tempo para desenvolver o seu “ócio”.

Seus versos são desenhos que falam e nos levam à origem “larval” de nossas percepções. As imagens que descreve provocam sensações que ofuscam o pensamento. Elas enjaulam o leitor no mundo dos sentidos, mesmo quando o obriga a olhar para ruínas retorcidas, trapos e miudezas desimportantes espalhadas pelo chão.

 Dois dons se retroalimentam nos inutensílios do poeta: a agramaticidade e a transvisão. Manoel se tornou autoridade em grandezas ínfimas. Fotografou lesmas focando na força da existência, botou aflição nas pedras, ouviu araras falando em ararês.

Veio para nos ensinar a desaprender, inaugurou olhares e palavras que nos salvam da automatização. Nenhum outro poeta alcançou o primitivo e a desconstrução do razoável com tanta competência. Em poucas linhas, Manoel é capaz de constelar as sensações primárias do leitor mais desavisado.

Porém, em sua viagem à absurdez, o convívio com entes e personagens chegou a despertar o ciúme do poeta. Desconfiava que Bernardo da Mata e os idiotas da estrada, por estarem mais próximos do estado de árvore, seriam capazes de enriquecer a natureza com sua incompletude, façanha que escritor algum jamais realizou.

A escrita pueril e ingênua pode enganar o leitor desatento. Seus versos chegam “de brinca”, trazendo riso e leveza proposital, mas saem “de vera”, deixando esquinas repletas de realidades profanas e sensuais. Os textos de Manoel alcançam o grau mais elevado da simplicidade: a divinal.

Definiu-se imbiografável; temia que sua humanidade pervertesse a linda obra que deixou. Estava certo. Nada do que passou no seu século de vida precisa ser conhecido para compreender Manoel de Barros. Sua alma está multiplicada nos livros e cadernos feitos à mão, não para ser definida, mas para enriquecer a nossa incompletude. Descanse, poeta.

                                                                                                  20/08/2020

Comentários

  1. Manoel iria gostar dessa minibiografia, escrita por quem tem muita sensibilidade. "Conhecer as técnicas para depois desobedece-las" é uma ótima descrição do Poeta do Pantanal. Este blog está cada vez melhor!

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