Brimos

                                       

Youssef e Abdala conviveram por toda a infância numa pequena cidade do interior do Brasil. Faziam parte de uma das inúmeras colônias sírio-libanesas que se espalharam pelas Américas no decorrer do século XX, fugindo de guerras e da intolerância religiosa.

 Os meninos passavam a maior parte do tempo jogando futebol, tomando banho de rio e andando de bicicleta, debaixo do calor escaldante e acolhedor do nordeste brasileiro. Não tinham a menor noção da violência que seus patrícios ainda enfrentavam nas aldeias próximas a Damasco.

Youssef, mais rápido e malicioso, sabia explorar bem a credulidade do inocente Abdala, cuja família havia chegado há poucos anos, quase meio século depois da vinda dos avós de Youssef.  Os Abdala ainda lutavam para se adaptar ao idioma e aos códigos do novo país.

Essa dupla protagonizou uma série de histórias engraçadas da minha família. Vou contar apenas a primeira:

– Oi, Abdala!  Você veio visitar El Cadi, né? – perguntou Youssef assim que foi receber o primo na porta de casa, naquela manhã.

– Al Cadi? Aquele safado voltou? – perguntou Abdala, se referindo ao faquir que se hospedou num hotel do centro da cidade há cerca de dois anos.

                O magrelo passou alguns meses deitado numa cama de pregos sem se alimentar, tomando apenas água. Faturou um bom dinheiro, até ser flagrado no meio da madrugada comendo panelada no cabaré mais chique da cidade. Por pouco não foi linchado.

– Não, imbecil. Eu tô falando da minha lagartixa que hoje completa a segunda semana sem comer nada – esclarece Youssef

– Então é isso? Lá na praça não se fala em outra coisa. Quero sim, meu primo. Onde está Al Cadi?

– Vou buscar lá no quarto, mas a espiada custa três cruzeiros.

–Três cruzeiros?!

–Tá bom, chorão. Pra você vou fazer por dois.

 Youssef desde cedo mostrava os sinais do empreendedorismo que trazia no sangue. Os lucros com Al Cadi já tinham lhe rendido bons momentos na Cubana, melhor lanchonete da cidade.

No entanto, a mãe do pequeno empresário, conhecia bem o filho que tinha. Da cozinha, após ouvir toda conversa dos meninos, ela interveio na negociação.

– Youssef!!!  Já te falei que nessa casa você nunca vai cobrar nada do seu primo. Deixa o menino olhar o que ele quiser.

 Abdala tinha suas fragilidades, mas sempre foi muito habilidoso na conquista de proteção dos mais velhos, principalmente dessa tia.

– Mas mãe, eu fiz até um abatimento pra ele. Vai ser um negócio de risco. A senhora sabe que o olho do Abdala é perigoso.

– Menino!!! Deixa de besteira. Já falei pra você parar com essa conversa de olho. Vai buscar logo o diabo desse calango! - gritou a mãe, já atrasada nos cuidados com o novo bebê.

                Contrariado, Youssef retornou do quarto, trazendo uma caixa de sapatos vermelha, com uma tampa cuidadosamente forrada com papel alumínio por dentro e por fora e dois orifícios em cada lateral, para permitir a sobrevivência de Al Cadi.

“ Quem me dera ele fosse tão caprichoso em suas tarefas escolares “, pensou a mãe por um instante.  Seu maior sonho era que pelo menos um dos filhos se formasse médico. Youssef, porém, já passava dos dez anos de idade sem que nenhum dos colégios da cidade tivesse conseguido alfabetizá-lo.

– Olha rápido! Ele tá cansado.

Abdala cuidadosamente se aproximou, enquanto seu primo levantou e fechou rapidamente a tampa da caixa.

– Viu, né? Pronto! Pode ir embora.

– Como é que se vê nessa ligeireza toda, Youssef.

–Só mais uma vez. Olha logo! – Ordenou o primo, repetindo o movimento praticamente na mesma velocidade.

Dessa vez, porém, Abdala conseguiu ver, permanecendo estranhamente calado e pensativo. Youssef percebeu o momento e resolveu concluir o seu plano cruel. Removeu a tampa da caixa e gritou:

–Não falei, mamãe??? Ele fulminou minha lagartixa só com uma olhada. É um demônio.

Antes que a tia pudesse esboçar qualquer atitude a seu favor, Abdala cruzou a porta da rua em disparada.

– Eu tenho um olho ruim mesmo, tia! – repetia aos prantos, o pobre coitado.

Al Cadi falecera de morte natural, dois dias antes.

 

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