Querido mestre

 


Brasília, 09 de novembro de 2023

   
Querido mestre,

Assim como os seus livros me alcançaram tanto tempo depois da sua partida, espero que esta carta encontre uma maneira de chegar até o senhor. Afinal, nós dois sabemos que uma das principais magias da escrita é vencer
 as barreiras do tempo e do espaço para aproximar amigos distantes, não é mesmo?
        Escrevo-lhe de um aparelhinho parecido com o bloco de anotações que o senhor carregava no bolso do paletó. Mas tente imaginar que dentro dele está o correio, o telégrafo, uma máquina de escrever, um ábaco, um rádio, todos os jornais do dia, textos de Sócrates a Dostoievski, uma máquina fotográfica, um gerente de banco, um restaurante, o mapa da cidade e uma peste chamada WhatsApp. 
        O mais incrível é que mesmo com todos esses recursos na palma da minha mão (e por causa deles), demorei mais de duas semanas para terminar essa carta. Aposto que a sua resposta voltará em muito menos tempo.
        Escrevo para lhe dizer que andei bisbilhotando a sua correspondência. Sim, dentre os absurdos da época em que vivo, também está a mania de se publicar as cartas de pessoas ilustres como o senhor. Mas não se preocupe, nas suas, nada há que o desabone, pelo contrário. Tenho certeza que elas conseguiram aumentar a admiração e a simpatia que todos já sentiam pelo senhor, apesar do governo.
        Explico: há mais de cinquenta anos o Ministério da Educação vem exigindo que os seus livros sejam lidos pelos jovens que prestam as provas que dão acesso às universidades, o vestibular. Como qualquer teoria de gabinete, esta também ignorou a realidade. Não é difícil adivinhar que o efeito dessa insensatez foi exatamente o oposto do planejado. O contato antes da hora com textos tão complexos acaba gerando um grave trauma e faz com que a maioria das pessoas evite buscar as suas obras no momento certo.
       Mas não vim aqui para lhe trazer problemas. Quero lhe dizer que em suas cartas conheci a elegância e a humildade do seu trato com os amigos e admiradores; desde de suas primeiras obras românticas, mas principalmente após a sua consagração no Realismo. Nunca imaginei que o autor de Quincas Borba tivesse qualquer dúvida quanto à qualidade do que escreveu. Encontrei insegurança e gratidão sinceras em todas respostas aos comentários dos amigos sobre cada publicação sua. Guardarei comigo as cautelosas orientações devolvidas aos novos escritores que lhe pediram ajuda. Aqui vai uma delas, caso não se lembre:

Carta de jul.1885 - A Enéas Galvão
 “Meu caro poeta,

        Este seu livro, com as lacunas próprias de um livro de estreia, tem as qualidades correspondentes, aquelas que são, a certo respeito, as melhores de toda a obra de um escritor. Com os anos adquire-se a firmeza, domina-se a arte, multiplicam-se os recursos, busca-se a perfeição que é a ambição e o dever de todos os que tomam da pena para traduzir no papel as suas ideias e sensações.
Mas há um aroma primitivo que se perde; há uma expansão ingênua, quase infantil, que o tempo limita e retrai. Compreendê-lo-á mais tarde, meu caro poeta, quando essa hora bendita houver passado, e com ela uma multidão de coisas que não voltam, posto desse lugar a outras que as compensam. ...
Desculpe a vulgaridade do conceito; ele é indispensável aos que começam. Outro que também me parece cabido é que, no esmero do verso não vá ao ponto de cercear a inspiração. Esta é a alma da poesia, e como toda a alma precisa de um corpo, força é dar-lho, e quanto mais belo, melhor; mas nem tudo deve ser corpo. A perfeição, neste caso, é a harmonia das partes.
Adeus, meu caro Poeta. Crer nas musas é ainda uma das coisas melhores da vida. Creia nelas e ame-as. ”


        Foi inspirador saber da dificuldade que o senhor e Lúcio de Mendonça enfrentaram nos primeiros passos da Academia Brasileira de Letras. Espero que já tenham lhe contado sobre a respeitada instituição em que ela se transformou. 
       Nas suas mensagens com Mário de Alencar, pude sofrer junto com vocês a perda da sua querida Carolina e conheci a solidão que o acompanhou até que a morte veio também lhe buscar, quatro anos mais tarde. Confesso que desenvolvi verdadeira inveja de Quintino Bocaiuva, José Veríssimo e Joaquim Nabuco, só porque eles foram seus amigos.
        Enfim, pude constatar que a lucidez não lhe abandou em momento algum. Pois para mim, a sua carta mais linda foi justamente a última:

Carta de 7 de set. 1908

"Meu querido Salvador de Mendonça.

        A tua boa carta trouxe ao meu espírito afrouxado não menos pela enfermidade que pelos anos, aquele cordial de juventude que nada supre neste mundo. É o meu Salvador de outrora e de sempre, é aquele generoso espírito a quem nunca faltou simpatia para todo esforço sincero. Tal te vejo a meio século, meu amigo, tal te vi nos dias da nossa primeira mocidade. Íamos entrando nos vinte anos, verdes, quentes e ambiciosos. Já então nos ligava a ambos a afeição que nunca mais perdemos.
        Aqui estás o mesmo de então e de sempre. A tua grande simpatia achou a velha da tradição itaboraiense para dizer mais vivamente o que sentiste do meu último livro. Fizeste-o pela maneira magnífica a que nos acostumaste em tantos anos de trabalhos e de artista. Agradeço-te, meu querido. A morte levou-nos muitos daqueles que eram conosco outrora; possivelmente a vida nos terá levado também alguns outros, é seu costume dela, mas chegado ao fim da carreira é doce que a voz que me alente seja a mesma voz antiga que nem a morte nem a vida fizeram calar.

Abraça-te cordialmente

O teu velho amigo,

       Um homem capaz de escrever assim, poucas semanas antes de se encontrar com a morte, é um ser que nos faz duvidar da própria finitude. Aliás, o desaparecimento perde o sentido quando conhecemos a vida de Machado de Assis. 
         Por isso tive a ousadia de lhe enviar esta carta. Para agradecê-lo, para que saibas que ainda hoje as suas palavras estão encantadas de sabedoria, mistério e beleza e, finalmente, para lhe fazer um pedido: considere, por favor, a possibilidade de me colocar na sua lista de amigos.
        Aguardo ansioso pela sua resposta.

        Um abraço afetuoso do futuro amigo,

                          Moisés Lobo Furtado

Comentários

  1. Moi, quão lindo está tudo!
    Sua carta está fantástica!
    Parabéns do seu velho Amigo!

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