Tia Marta


       
– Você tomou o seu café direito, menino? Olha, a casa da sua tia é igual a da sua mãe. Aqui você pode fazer o que quiser. Entendeu, titio? 
      Falou isso me olhando nos olhos, enquanto se inclinava com dificuldade para beijar a testa da mãe e dizer para ela:
       – Eu te amo.
       Inconformada com a viuvez e com a velhice, minha avó Carmen nem olhou para a filha. Apenas abriu os braços com as mãos espalmadas para cima e perguntou em árabe:
      – Pra quê? O que adianta?
      E lá se foi a tia Marta, naquele calor, com um aparelho de ferro amarrado numa perna e uma bengala de madeira na outra mão, elegante e perfumada, dando as últimas instruções para o almoço enquanto se ajeitava atrás do volante do Chevette na saída para o trabalho. 
      Sua luta com a paralisia infantil, antiga e cotidiana, parecia tão natural quanto os três meses que eu passava naquela casa, em todas as férias da minha adolescência.
       Essa foi a memória que veio me acudir trinta anos mais tarde, quando chegou a minha vez na lida com as órteses, com as muletas e com o absurdo. A força e a sabedoria da minha tia vieram passar comigo.
        Aprendi com ela que para parecer invisível a deficiência exige valentia e querer diários. A adaptação não termina, não aceita tédio; mas a minha tia Marta foi muito mais alto...
       Ela adorou o pai e os irmãos, reuniu as irmãs, cuidou da mãe e do querido Teobaldo até o fim, acreditou no filho e na filha, inspirou as netas e curtiu o neto temporão. Namorou, jogou, bebeu Campari e fez as melhores esfihas da América Latina. Tudo isso sem perder a incrível capacidade de sorrir e chorar na mesma frase.
       Uma pessoa que tomou sorvete quase todos os dias dos seus noventa e um anos merece só uma coisa de nós: reverência.
     Quem poderia imaginar que a filha aprisionada desde cedo no corpo e na pequena cidade fosse a primeira a aprender a voar? 
     Deus imaginou.
     – A sua casa vai ser minha para sempre, entendeu, titia? Descanse um pouco. Obrigado por tudo. 
                   

Comentários

  1. Que homenagem linda❤️ D. Marta sempre muito alegre e acolhedora. saudades sempre 🌷💔

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  2. Sem palavras....a crônica descreve tudo perfeitamente...uma mulher grandiosa...uma vitoriosa em sua existência e como amou a vida...devemos deixa-la voar...com saudades sim...desespero jamais....vamos permiti-la flutuar e cuidar de tudo lá de cima...mais uma vez parabéns pelo escritor perfeito.. parabéns tia Marta pelo exemplo de vida...vai c DEUS e até breve...

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  3. Anônimo não...sou eu... Carmem Marcello

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  4. Lindo! Obrigada meu primo pela linda homenagem. Ela era td isso q vc falou, e como amou sua família. Até o último momento chamou por suas irmãs, e acho q ela ouviram pq teve uma passagem rápida e tranquila. Deixou muitas saudades, e a certeza de q o amor cura td. Bjs

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    1. Que bom, Carminha. "Vida longa e morte rápida". As irmãs eram muito ligadas. Imagino a alegria na mesa desse reencontro. Beijos.

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  5. Que lindo Mussinha, você captou a essência do que foi nossa mãe que Deus nos deu a honra e a dádiva de conviver com ela. Hoje uma estrela a luzir por todos nós. Juarez.

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  6. que linda homenagem Moises!!! texto sensível, sábio e profundo. completamente humano. bjos solange

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  7. Linda homenagem Moisés!
    Parabéns.

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  8. Moi, quanta sabedoria tia Marta proporcionou.
    É a prova de que o ser humano e até outros seres se reinventam e consegue até com glamour, chegar onde querem!
    Meus respeitos e admiração!
    Do velho amigo!

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    1. Obrigado, amigo velho. Você iria adorá-la.

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  9. Tia Marta marcou a infância de todos os sobrinhos dela. Sempre muito amorosa. Sua casa estava sempre de portas abertas. Todas as noites, muitos se reuniam pra a mesa de jogo ou apenas para conversar. Muitos noites de Natal passei la, muitos almoços, jantares. Minha vida toda foi ligada a ela. Tia marta sempre estava lá, ou na sala ou na sua cozinha fazendo as suas esfirras ou ate mesmo no seu quarto, nas tardes de final de semana, qdo ia com mamae ouvir as conversas delas. Tia Marta é inesquecível! Todos temos muitas histórias com ela. Mirtes

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    1. Sim, Mirtinha. Tivemos muita sorte em tê-la como tia. Ela tornou a nossa família mais forte.

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  10. Parabéns Mussa, por mais essa linda e merecida homenagem a Tia Marta. Ficam as melhores lembranças da nossa infância, com a tia querida sempre presente em nossas vidas: no salão de beleza, na cozinha, na loja do vovô, nas festas do Comércio Clube ou guiando o seu indefectível corcel. Exemplo de vida e de bondade. Muitas saudades!

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