O melhor estrogonofe da América Latina

 



– Mãe, chegou a hora. Tenho que aprender a cozinhar.
– Hora de quê, meu filho?
– Mãe!!! Já te falei duzentas vezes. Vou pra São Paulo na semana que vem. Vou fazer residência. São três anos. Lembra?
– E você vai mesmo, menino? Seu pai já não lhe disse que é perigoso? Você passou aqui também. Deixe de agonia.
– Mãe... pelo amor de Deus. Eu já aluguei apartamento, já fiz a matrícula.
– Tá bom... Ô menino teimoso. Qual prato você quer aprender?
– O estrogonofe, claro.
– Claro. Tá bom.
O rapaz pegou caderno e o lápis.
– Quais são os ingredientes?
– Anota: dois quilos de alcatra cortada em tiras pequenas.
– Pequenas?
– Sim, pequenas, mas não muito.
– Como assim, minha mãe?
– Eles têm mania de cortar pequeno demais. Fale para o açougueiro que você quer desse tamanho – marcou com a unha uma linha na metade do dedo polegar do rapaz.
– Tá, entendi. Três centímetros de comprimento. Quê mais?
– Duas colheres de sopa de margarina (ou manteiga), duas cebolas médias picadas, duas doses de conhaque, duas colheres de molho inglês, catchup, um vidro de...
– Quanto de catchup?
– Muito. O segredo da receita é esse.
– Que segredo é esse que nem a senhora sabe?
– Você vai vendo pela cor, menino. Coloca metade do vidro e vai vendo. Compre de uma marca boa.
– iiih! Conhaque, catchup bom... Já vi que vou ter que gaxxtar.
– Você tá cheio de dinheiro guardado, criatura. Olha! Escuta uma coisa: mulher não gosta de homem miserável e a Fernandinha é uma ótima menina.
– Tá bom. Tá bom. Falta só o creme de leite, né?
– Não. Tá faltando o que você mais gosta. Compre um vidro de champignons pequenos.
– Eita! É mesmo. Tô lascado. E como é o preparo?
– Não, senhor. Agora você vai me levar na Cooperativa pra gente fazer as compras. Vamos fazer o estrogonofe amanhã, juntos.
– Ah não... me ferrei.
Lá se foram os dois no fusquinha branco do rapaz para o final da Asa Norte. A Cooperativa era o supermercado dos funcionários do Banco do Brasil. A despesa era descontada direto no contracheque do velho Vicente. Era a hora da vingança.
Dona Lourdes encheu três carrinhos de compra fácilmente e, para variar, brigou com a moça do caixa por causa dos preços.
O fusquinha voltou abarrotado de pacotes até o teto. O rapaz atravessou o eixão de ponta a ponta com apenas um retrovisor; estava acostumado.
Quando chegaram na garagem, Maria Odete já estava lá. A mãe subiu com as pernas inchadas.
– Tô morta.
O filho e a empregada organizaram os pacotes nos carrinhos, sem machucar as folhas e as frutas. O jovem era experiente; fazia isso desde os dez anos de idade.

No dia seguinte a dupla voltou a campo.
– Bora cozinhar, mãe! 
– Tá cedo, meu filho. Deixa terminar esse disco. Ouve a voz desse homem.

“Strangers in the night
  Two lonely people...“

– Vamos começar logo, mãe. Aumenta o som da radiola e vamos pra cozinha.

“I want to wake up in a city
 That never sleeps...”


– Tá bom. Ô menino chato. Tempere a carne com pimenta do reino e um pouco de sal.
– Pouco?
– Sim, o catchup e o molho inglês já têm sal.
– Tá bom assim? (uma colher de chá para cada quilo)
– Tá bom. Agora derreta a margarina naquela panela grande ali.
– Pronto. Derreteu.
– Coloque a carne, misture e tampe a panela.

“ Fly me to the moon
   Let me play among the stars... “

– Tô gostando disso, mãe. Esse negócio de cozinhar é moleza.
– É, né... Agora vamos picar a cebola em cubinhos bem pequenos.
– Vixe! Como é que faz isso?
– Assim, olha. Corta a cebola na metade, faz um quadriculado e desce a faca devagar.
– Caramba!
– Pois é. Cuidado com a mão.
– Eita!
– Agora dá uma olhada na panela.
– Deixa eu ver. De onde veio essa água toda?
– Dê uma misturada e deixe a panela aberta enquanto a gente corta a segunda cebola.
– Mãe, deve ter um jeito mais fácil de picar isso.
– Você não disse que é moleza?
– Tá bom. E agora?
– Misture a cebola na carne e tampe a panela.
– De novo?
– Sim, agora vamos esperar a água da cebola amolecer a alcatra. O povo faz estrogonofe com filé. Essa receita é diferente.

"When I was twenty-one
 it was a very good year..."

– O cheiro já tá ficando bom.
– Tá vendo? Quem me ensinou foi o chef de um restaurante chique lá de São Paulo; fui com a Ida e com a Maria. Agora deixe a panela aberta até a água diminuir bem. Mexa de vez em quando.

But now the days grow short
 I’m in autumn of the year ...”

– Pronto! Diminuiu.
– Ótimo. Agora vamos flambar.
– Oba! Sempre quis fazer isso. Como é?
– Coloque o conhaque e risque o palito de fósforo. Coragem! Mas não vá se queimar. Cuide sempre do seu corpo.
– Ahaa! Consegui de primeira.
– Muito bem! Ô menino danado.
– E agora?
– Agora é só colocar o molho inglês, o catchup e os champignons. Misture tudo e deixe ferver.
– Mãe, é vermelhão assim mesmo?
– É, assim tá bom. Agora desligue o fogo.
– E o creme de leite?
– A gente só vai colocar na hora de servir. Quanto mais tempo demorar para servir, mais gostoso ele fica. Você vai dar outra ferventada, apagar o fogo e pôr o creme de leite, senão ele corta.
– Uma lata?
– Vai acrescentando aos poucos, misturando e provando até chegar na cor que você gosta.
– Tô morrendo de fome.
– Moisés, não são nem dez horas da manhã.
– Tá bom. Vou só passar um pão nesse caldo pra ver se ficou bom mesmo.

“I ate it up and spit out
 I face it all and I stood tall
 and did it my way. “

– Essa música só me lembra o meu pai.
– Eu sei, mãe, mas precisa chorar?
– Precisa. Você vai ver...






Comentários

  1. Gostaria que esse tempo voltasse por todos nós....não deveríamos envelhecer...nem perder quem amamos....recordar não é viver... recordar é morrer de saudades...

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  2. Excelente, Moises!!!
    Obrigada por compartilhar a história e essa receita maravilhosa desse prato com a qual já comprovamos ser o melhor estrogonofe do mundo 🌎

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  3. Adorei, meu amigo. E me emocionei. E me deu água na boca. E me deu saudade. Bjs Marília

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    1. A escrita não deixa a saudade passar, minha amiga querida. Vou fazer um estrogofe pra você e pro ogro.

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  4. fiquei com vontade .Vai ter que fazer pra mim hehehe . Como vc se retrata bem !

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  5. Como me lembro desse prato feito pela tia Lourdes. Vc precisa posta tb os ovos com molho de tomate e ervilhas. Hoje descobri que esse prato de chama shakshuka kkkkk

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  6. Que texto maravilhoso e emocionante, Moisés! Mãe e filho transbordando amor em um momento único. Memória que nunca se apaga. Sua mãe deve estar orgulhosa pois você aprendeu direitinho. Simplesmente delicioso seu estrogonofe! Faz jus ao título!

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