Onde


             
                 Minhas primeiras obras literárias foram as cartas para os amigos que se mudavam de Brasília. Guardei uma cópia das minhas respostas junto de cada carta que recebi, no mesmo envelope. Não admitia perder aquele trabalho. Foi bom ter esse apego. Gosto de saber quem fui.
            Hoje começo meus escritos em um escritório ambulante que carrego na palma da mão. Sou moderno, desses que digitam com o dedo indicador. Pertenço a geração que ficou no limbo entre a datilografia e a informática, um lento semianalfabeto digital.
            Registro no aplicativo palavras e ideias que me assombram em filas, intervalos e insônias. No limite do prazo de entrega, me sento na frente do computador e vou montando o quebra-cabeça. Com os dois dedos indicadores a velocidade quase dobra, são quase vinte oito toques por minuto.
            Sou vanguarda, não consigo escrever no papel. Inverto frases e parágrafos, saio do roteiro, mato protagonistas no início da trama. Outro dia assassinei uma criança que ressuscitou no final. Sou totalmente dependente do corretor de texto. Sem ele seria impossível administrar o vexame.
            Não é exatamente um lugar reservado. O meu escritório é quase uma "lan house" numa área de passagem entre os quartos da minha casa. Daqui ouço a TV da sala, o solo de guitarra de um filho e os tiros de metralhadora do sniper da bancada ao lado.
            Sou do time que sofre para escrever, se é que existe outro. Oitenta por cento do caminho é árido e braçal, mas quando as peças começam a descobrir seus lugares, surgem humor, melancolia e um prazer que compensa toda empreitada. A TV, a guitarra e os tiros desaparecem. As palavras saltam da minha cabeça para tela e olham para mim.
            Tenho poucos rituais. Meu lugar fundamental é o compromisso, a provocação, a data. Chego a pagar por eles. Não escreveria por livre vontade, procrastino demais. Sou um preguiçoso bem mandado, mas ainda gosto de saber quem sou.



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