Dona Otília


 

Garimpar a obra de Cora Coralina é uma das melhores coisas a se fazer nesta pandemia. No livro "Vintém de Cobre" encontrei um texto que se destaca um pouco da maioria, pela diferença no estilo e na leveza. Porém, antes de deixar as minhas impressões, gostaria de garantir que vocês fizessem a leitura sem qualquer interferência menor. Aqui vai:

                              Dona Otília

Ninguém sabia porquê. Ela tinha pegado nome de gente, acrescido mais de dona. Era Dona Otília. Até os trabalhadores que iam ao quarto dos arreios buscar qualquer pedaço de corda, velhas ferramentas, achavam graça nela. Sempre no seu canto, deitada ou especada, cochilando ou de olho redondo e vivo, acomodada no seu canto. 

Aconteceu sim, que aconteciam dessas coisas lá na fazenda, vez por outra, uma galinha sadia e botadeira dava de ter suas dificuldades de soltar naturalmente o ovo. Ficava pelos cantos do terreiro mal conformada, tentando com o próprio esforço e ajuda da mãe natureza sair da entalada. Às vezes morriam, sumiam, pouca falta faziam. Eram tantas ... 

Cacarejantes, cristas vermelhas, alegres procurando os ninhos, arrastando ternadas de pintos de todos os tamanhos, chocando pelos matos, constantemente voltavam ao terreiro, comboiando ternadas de pintos. Quando não eram os galos que as traziam. Galos cantores, bem empenados, desses que cantavam até encostar o bico no chão. Donos das madrugadas, respondendo a todos os poleiros do mundo, dominavam com a sua plumagem, esporões e cristas vermelhas o terreiro da fazenda. 

Voltando às galinhas doentes, às vezes vinha socorro quando Siá Balbina e Nicota davam pela coisa. Elas traziam de olho a criação e entendiam das chocas. Aplicavam seus remédios, diagnosticavam, no entendimento que vinha da ignorância esclarecida pela prática. Ovo atravessado. Caso às vezes complicado, ovo quebrado, oveiro de fora, muito pior. Pegavam a galinha, facilmente, sem mais possibilidade de fuga, levantavam pelas pernas, davam uma sacudidelas de lá pra cá debaixo para cima, num movimento de quem estivesse socando. Era num instante, ovo pra fora e a galinha restaurada, solta, meio estonteada, mas já aliviada. 

Sim, que passava uns dias sem botar, depois entrava na rotina, vermelha a cantarolar botando. Não tão fácil a de ovo quebrado. Com essa era a cirurgia mais complicada, onde entrava azeite de mamona e a manobra dos dedos sábios tirando de dentro as cascas do ovo quebrado, sabe-se lá por quê. Recuperava-se, às vezes, e era condenada à panela, ficava estéril, improdutiva. Foi o que aconteceu com D. Otília.

 Em observação, depois da penosa delivrance por conta de Siá Balbina, foi largada no quarto dos bagulhos. Pegado ao paiol era morada tranquila de ratos abundantes, não faltando milho. No canto mais discreto, sabiamente canto da porta, acomodou-se a galinha operada. Ninguém mais se lembrou dela, sem esquecer que Siá Balbina proveu uma cuia d’água. 

O tempo deu o seu giro, e muita coisa se passou na Fazenda, entre donos, moradores e criação miúda. E foi que certo dia, com admiração de todos, apareceu D. Otília na porta do quarto, desceu mesmo o batente e se especou contra o baldrame e ali ficou atenta, vendo a galinhada, companheira, catar as mancheias de milho que Siá Balbina atirava para os lados. Foi geral o espanto.

Até as companheiras de papo cheio, na passagem para se abrirem pasto afora, paravam e segredavam com ela, bico a bico. De certo se alegravam, se cumprimentavam entre elas. Mesmo o galo carijó ao passar fez menção de arrastar a asa. Foi um espanto. D. Otília deu de deixar o canto escuro do seu resguardo e vir todos os dias se especar contra o baldrame, tomando sol, participando, à sua moda.

 Foi aceito que não teria destino de panela e ficasse de observação. O terreiro reconheceu seus direitos à permanência. O tempo ia passando e D. Otília deu de cantarolar e mudar de cores. Plumagem nova, crista e barbelinhas vermelhas, olhinhos vivos, orelhinhas brancas, era dessa nação de galinha carijó de orelhas brancas. 

Siá Balbina assuntando, às vezes resmungando, se benzendo. Siá Nicota, segredando com Siá Balbina, sacudia a cabeça descrente. Aconteceu que depois de um sumiço de que foi novamente esquecida, num dia de sol, D. Otília aflorou na porta do paiol, especada no baldrame, toda compenetrada, chamando choco e com uma réstia de pintos pretos de pontinha de asa branca, tirando para empenados carijós. 

Siá Balbina conversou com a Nicota: “Num falei Nicota... Suncê perdeu a aposta, tudo raça do galo carijó. O sem-vergonha que não respeita nem galinha doente. ” Ao que retrucou a Nicota:

 "Foi bão, Bá. Deixou ela sadia."

                                   Fim

Dona Otília é para mim um conto perfeito, irretocável. A redenção da galinha com nome de senhora foi uma surpresa adorável escondida na obra de Cora Coralina. O texto é movimento puro, não tem início ou fim, continua acontecendo. Captura o leitor desde o primeiro momento, o deixando incapaz de prever o que virá na próxima frase.

D.Cora nos pega pela mão e sai mostrando o terreiro da Fazenda Paraíso. Narra o olhar atento de Aninha sobre a rotina de Siá Balbina e Nicota na lida com galos, galinhas, pintinhos e ovos. “Galos cantores, bem empenados, desses que cantavam até encostar o bico no chão. Donos das madrugadas... “

Com a genial “Aconteceu sim, que aconteciam dessas coisas lá na fazenda...” somos levados às complicações das galinhas botadeiras entaladas com ovo atravessado, oveiro de fora ou com ovo quebrado, o caso da protagonista. “... vez por outra, uma galinha sadia e botadeira dava de ter suas dificuldades de soltar naturalmente o ovo. Ficava pelos cantos do terreiro mal conformada.  ... às vezes vinha socorro quando Siá Balbina e Nicota davam pela coisa. Elas traziam de olho a criação e entendiam das chocas...no entendimento que vinha da ignorância esclarecida pela prática. ”

Apresentado o conflito, seguimos agora de mãos dadas com Aninha. “O tempo deu seu giro...” A magia do conto está na reação dos humanos ao fora do comum. A reverência à saga de uma galinha convalescente, esquecida (“eram tantas”) e ressuscitada. D. Otília, mesmo infértil, é batizada com pronome de tratamento e tudo. “Foi aceito que não teria destino de panela e ficasse de observação. O terreiro reconheceu seus direitos à permanência. “

Reconhecimento unânime, “Até as companheiras de papo cheio, na passagem para se abrirem pasto afora, paravam e segredavam com ela, bico a bico. ” O texto não perde o ritmo em momento algum, o melhor está sempre por vir. “O tempo ia passando e D. Otília deu de cantarolar e mudar de cores... ”

Por fim, a desconfiança torna-se realidade. O namoro de D. Otília e o galo carijó dá seus frutos. “num dia de sol, D. Otília aflorou na porta do paiol, especada no baldrame, toda compenetrada, chamando choco e com uma réstia de pintos pretos de pontinha de asa branca, tirando para empenados carijós. “

Novo espanto acomete os moradores da fazenda, mas Nicota, resume na última frase, a sabedoria e o humor de Cora Coralina.

“Foi bão, Bá. Deixou ela sadia. ”


Comentários

  1. De fato, um conto perfeito. O blogueiro tem a sensibilidade de destacar os pontos mais luminosos da narrativa. Parece tão fácil, não?

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  2. O que há em comum em Manoel de Barros e Cora Coralina, que tanto atrai Moisés Lobo Furtado? São as palavras? A linguagem simples e ao mesmo tempo sofisticada? Talvez a abundante humanidade que existe em ambos os três.

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  3. Muito bons, texto e comentários. O final é bem típico do pessoal do interior, simples e filosófico...

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